Elas têm filhos, trabalham em áreas que já foram exclusividade dos homens e pegam no pesado diariamente, mas as semelhanças com a personagem Griselda “Pereirão”, vivida pela atriz Lilia Cabral na novela Fina Estampa (Globo), acabam aí. Enquanto Griselda foi abandonada pelo marido e teve que arregaçar as mangas para sustentar a família, as francanas ouvidas pela reportagem herdaram a profissão do marido e trabalham ao lado dele. Além disso, diferentemente de “Pereirão”, as francanas fazem questão de cuidar da pele, do cabelo e não abrem mão de comprar cremes, perfumes, roupas e sapatos.
Alcione Pio de Morais, 41, é pintora. Solange Magda da Silva, 33, mecânica. Elisabete de Sousa Morais, 55, lixa tacos de madeira. Sheila Aparecida Rodrigues Faria, 40, é funileira. Em busca da liberdade profissional e financeira, elas não se importam de pegar máquinas pesadas, se sujar de tinta, entrar sob os carros ou inalar o pó da madeira lixada.
Com dedicação e carisma, as “mulheres Pereirão” de Franca têm conquistado cada vez mais os clientes. “A mulher ainda tem receio de frequentar oficinas, mas aqui, elas têm mais confiança e se sentem mais à vontade”, diz Sheila, revelando que sua presença na oficina do marido aumentou em 30% o número de clientes mulheres.
Neste universo masculino “invadido” pela feminilidade, até o preconceito perde espaço e eles se rendem à inteligência e disposição delas. O mestre de obras Antônio Pereira trabalhou durante oito anos com uma equipe de mulheres pintoras em Araraquara e afirma que elas são melhores. “Elas têm mais delicadeza na pintura, então fica um serviço mais bem feito que o dos homens.”
Conheça abaixo as histórias dessas mulheres francanas.
Solange: macacão e graxa
Solange Magda da Silva tem apenas 33 anos, mas muita experiência profissional em diversas áreas com domínio masculino. Começou aos 6 anos ajudando a família na roça de café em Espírito Santo do Pinhal (SP). Aos 20 trabalhou como servente de pedreiro e logo depois foi contratada pelo time de futebol feminino da Francana como lateral-esquerdo. A carreira de atleta ficou para trás há 8 anos, no entanto, a curiosidade e a habilidade para fazer trabalho que até pouco tempo era exclusivo do homem permaneceram.
Mesmo trabalhando numa fábrica de palmilhas, nos fins de semana Solange começou a ajudar o marido na oficina mecânica do sogro, e tomou gosto pela graxa e pelo motor dos carros. Há três anos, passou a trabalhar exclusivamente como mecânica e faz questão de ressaltar que tem diploma. “Fiz um curso técnico para aprimorar meu conhecimento. Agora pretendo estudar injeção eletrônica”, diz, reconhecendo que, às vezes, sofre preconceito. “Os clientes mais ‘turrões’ ficam desconfiados. Então, mexo no carro só na ausência deles. Quando eles chegam, meu marido toma a frente”, conta ela, rindo.
Como as colegas, Solange tem jornada dupla. Apesar das quase 12 horas diárias na oficina, ela ainda cuida dos filhos de 7 e 5 anos e da casa. “Me viro nos 30”, conta. A recompensa é a renda mensal de R$ 4 mil que a família investe na construção da casa própria.
Mesmo em meio aos veículos, peças e ferramentas, Solange mantém os cabelos impecáveis, a sobrancelha feita e o batom.
E será que ela já foi chamada de “Pereirão”? “Ainda não, mas, se isso acontecer, não vou me importar e sim sentir orgulho. É muito bom a novela mostrar e divulgar essa nova realidade”, afirmou.
Claudinei Teófilo da Silva, 30, o marido de Solange, brinca com a situação. “É uma satisfação trabalhar ao lado dela. Estou quase querendo ir para casa cuidar das crianças e deixá-la aqui no meu lugar”, diz. E você confia no trabalho dela? “Sim, 100%”, diz Claudinei, ressaltando que 60% dos clientes da sua oficina já são mulheres.
Alcione: musa da pintura
Cansada de trabalhar como doméstica durante nove anos e de ganhar pouco, Alcione Pio de Morais, decidiu, em janeiro deste ano, trabalhar ao lado do marido, o pintor Donizeti Inácio Camilo, que tem mais de 30 anos de profissão. Antes de pegar no batente diário de sete horas, a pintora ocupa suas manhãs com atividades para manter a forma, como caminhada e natação.
Ela já se acostumou a não passar despercebida toda vez que inicia uma nova obra. “Os pedreiros e serventes sempre dão uma olhada... Sei que estou num lugar que não existia mulher e acabo inibindo o pessoal, mas logo faço amizade e eles se acostumam com a minha presença.”
O marido só tem elogios para a parceira. “Em seis meses, ela aprendeu coisas que um pintor demoraria um ano e meio.” Questionado se, então, considera que as mulheres são mais inteligentes que os homens, Donizeti responde rápido que sim. “Mais inteligentes e caprichosas. Ela cria estratégias. Por exemplo, na hora de começar a pintura, ela sempre sugere a melhor forma”, diz, afirmando que está adorando ficar todo o tempo perto da mulher com quem tem dois filhos de 13 e 17 anos.
No trabalho, Alcione veste calça jeans, camisa fina e um sapatênis. Para proteger os cabelos da tinta, um lenço colorido e boné rosa. Mas ela confessa que não é muito vaidosa. “Estou ficando agora. Antes ganhava R$ 665 por mês e não podia me cuidar muito. Hoje o meu salário triplicou e posso comprar tudo à vista: perfumes, cremes, roupas. Como meus filhos estão grandes e sempre me apoiam, agora tenho mais tempo para cuidar de mim”, diz ela, revelando que comprou um computador com os primeiros salários que recebeu como pintora.
Feliz e realizada, Alcione quase tira o trabalho duro de pintora de letra. “Todo serviço tem seu grau de dificuldade, é normal. Confesso que ainda não me acostumei com a altura de algumas casas. Depois do sétimo degrau ainda tremo um pouco.”
Sheila: funileira peão
Sheila Rodrigues Faria era sapateira quando se apaixonou pelo funileiro Agenor Francisco Faria, mas conhecido como Fer-nando. Há quatro anos, depois de cuidar dos filhos, que hoje têm 8 e 17 anos, Sheila decidiu concluir os estudos para trabalhar como secretária da oficina. “Não gostei de ficar no escritório, acabei aprendendo o serviço de funilaria e gostei”, diz. Hoje, ela prepara os carros para receber pintura nova. “Lixo, passo a massa, desmonto e monto as peças, depois faço polimento, lavo e encero”, conta, ressaltando que o filho mais velho admira seu trabalho, apesar de achá-lo cansativo para a mãe.
Ela conta que sua presença na funilaria contribuiu para a ampliação da cartela de clientes e, com a propaganda boca a boca, o negócio ganhou mais clientes mulheres, que hoje representam 30% do total. “A mulher ainda tem receio de frequentar oficinas. Aqui, elas têm confiança e se sentem mais à vontade.”
E o marido, o que acha da parceira de trabalho? “É muito boa. Se eu soubesse que daria tão certo, teria pensando nisso antes. Agora fica tudo em casa e o que ganhamos é investimento próprio”, afirmou. O casal trabalha sozinho, mas quando o serviço “aperta” contrata mais um ajudante.
Sheila tem se mostrado ainda uma ótima negociadora. “Compro carros, reformo e depois vendo. Consigo ganhar mais de R$ 2 mil por mês”, diz, contando que, no início, os clientes assustavam, mas hoje a parabenizam pelo trabalho.
Sheila ainda não é chamada de “mulher Pereirão”, mas já tem um apelido: “Peão”. Ela explica. “Uma vez eu estava debaixo do carro, apenas com as pernas de fora. Estava frio, então usava botina. Chegou um cliente, chutou meu pé e disse: ‘Peão, pode olhar meu carro?’. Quando levantei, ele ficou com tanta vergonha que quase se enfiou debaixo do veículo (risos)”, lembra.
Elisabete: lixa e pó
Quando conheceu Antônio Carlos de Morais, há 30 anos, Elisabete de Sousa Morais, 55, nem imaginava que se tornaria expert em lixar tacos de madeira. “No começo, eu só ajudava a limpar o pó, mas acabei me identificando com o discão (máquina de lixar o taco) e passei a ajudar meu marido”, conta. Ela trabalha seis horas por dia e ganha uma renda mensal de R$ 950.
Há oito anos, Antônio Carlos de Morais precisou se afastar do trabalho devido a uma alergia e Elisabete assumiu o comando do negócio ao lado do filho de 34 anos. “A máquina pesa 90 quilos. Se a pessoa não souber dominá-la, é derrubada no chão. E a Elisabete faz o trabalho muito bem”, conta, orgulhoso, o marido.
*Fotos de Rafael Mulinari e Cassiano Lazarini
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