A música Cio da Terra, letra de Chico Buarque e música de Milton Nascimento, começa assim: ‘Debulhar o trigo/ Recolher cada bago do trigo/ Forjar no trigo o milagre do pão/ E se fartar de pão’. Bonito! Muito bonito de se ver! Um trigal enche a vista mais empedernida. Parece milagre, uma quase gramínea sustentar o peso do trigo. Muita gente nem imagina que esse cereal se desenvolve em forma de espiga. Só conhece a farinha. Às vezes, do mesmo saco.
Existe rapaz que não gosta de ser incluído na moçada. Sente-se ofendido, pensa que o coletivo só pode ser usado para um grupo de moças. Elas também estranham, quando um conjunto de rapazes e raparigas é chamado de moçada. O vocabulário anda em baixa.
Como entender então que debulhar é retirar os bagos de trigo da espiga? Isso mesmo! Depois, os grãos são triturados para produzir a farinha. O processo todo (triturar o cereal, misturar a outros ingredientes, amassar e assar) se constitui no forjar o pão.
Aliás, o pão é forjado desde 5 mil anos antes de Cristo. Trata-se de alimento muito antigo. Tornou-se emblemático depois que Jesus operou o milagre de fazer de cada migalha de pão, um novo pão, até o povo poder se fartar, ou seja, se encher.
A fabricação se complicou nesse ponto. Multiplicar o pão é coisa de político, principalmente nas promessas de campanha. Na época, o rei mandou a polícia acompanhar o engodo. A isca alimentícia foi pisoteada e destruída. A truculência incorporou-se na genética policial.
Se o povo quiser pão, deve plantar o trigo e forjar até chegar ao alimento milenar. No entanto, vez por outra, vem nova repressão. A polícia pisoteia a farinha, espalha este futuro alimento pela terra. Não deixa possibilidade de aproveitamento.
Desde a colonização, a Argentina se notabilizou pela plantação de trigo. Virou exportadora do produto. Há questão de duas décadas e meia, o país vivia sob regime ditatorial. Por política mercadológica a farinha faltou na mesa dos argentinos. A população atravessava o rio, para comprar no Paraguai.
Na volta, a polícia parava os ônibus na rodovia. Os passageiros eram obrigados a sair e a abrir suas bagagens no acostamento. Se houvesse farinha de trigo, os pacotes eram pisoteados. Numa dessas fiscalizações anti-importação, uma senhora já idosa protegeu duas embalagens contra o peito. Mesmo assim, o policial furou os saquinhos com a ponta da baioneta e ainda feriu a mulher.
Num outro contexto, sexta-feira, à tarde, um casal saiu do serviço e fez compras. Ao voltar para casa, o motociclista não conseguiu fazer a rotatória de acesso ao Jardim Tropical. As embalagens se espalharam pelo chão.
Enquanto populares juntavam as mercadorias, para os acidentados, o policial que chegou para registrar a ocorrência pisou em dois saquinhos de farinha, como se eles fossem tapetes estendidos para ele passar.
Antônio Araújo
Professor de redação - tonin.palavras@uol.com.br
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