<i>"Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força"</i>
<b>Lema do Partido, no livro 1984, de George Orwell</b>
Os amantes dos controles exercidos pelo Estado sobre a vida dos cidadãos têm um grande motivo para comemorar. O prefeito da capital paulista, Gilberto Kassab (DEM), confirmou que toda a frota de veículos licenciada na maior cidade do País será obrigada a ter chips de monitoramento instalados até 2011. No total, 6 milhões de veículos terão os tais chips, que fornecerão às autoridades de trânsito - imediata e automaticamente - detalhes sobre a velocidade do carro, sua placa de identificação, a situação com relação à documentação e outras minúcias. Uma intrincada rede de antenas espalhadas por mais de 15 mil quilômetros da capital vai garantir que nenhum veículo escape do controle.
O prefeito paulistano está bastante empolgado com seu novo projeto. Acredita, piamente, que será possível reduzir significamente os congestionamentos nas principais marginais de São Paulo quando o sistema estiver implantado, o que não é pouca coisa para a meca dos engarrafamentos. Os experts de sua equipe garantem que será possível fazer intervenções cirúrgicas no pesado trânsito da capital - como criar corredores exclusivos, de uma hora para ou outra, apenas para caminhões - em faixas específicas e garantir, via monitoramento dos chips, que a determinação está sendo cumprida pelos motoristas. Os especialistas apontam também que as blitze de trânsito passarão a ser muito mais eficientes. Um pequeno número de agentes de trânsito será suficiente para identificar e interceptar veículos suspeitos de transitar de maneira ilegal, que tenham sido furtados ou cujos condutores sejam acusados de ter cometido infração penal.
Por mais bem intencionada que seja, medidas como esta, anunciadas por Gilberto Kassab, me dão calafrios. A pretexto de controlar a ordem, assegurar o cumprimento da lei, disciplinar e fazer cumprir as regras de convívio social, dia a dia o Estado brasileiro vem cerceando as liberdades individuais dos cidadãos, de maneira tão lenta e gradual quanto perigosa e irreversível. São tantas as medidas, adotadas por sucessivos e distintos governos dos mais diversos níveis e esferas de poder, que muitos nem se dão conta mais de como as noções de privacidade e de liberdade individual têm sido mutiladas. E o pior, sem que praticamente ninguém se incomode muito com isso.
Tome-se o exemplo da CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira que, diferente do que o nome apregoava, teve caráter bem mais permanente do que poderia se supor no início. Vigorou por prazos significativos dos mandatos de três presidentes distintos. Criada em 1993, ainda no governo-tampão de Itamar Franco com o nome de IPMF (Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira), ganhou força e importância quando foi resgatada dois anos depois por Adib Jatene, ministro da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, como alternativa para compensar os parcos recursos federais disponíveis para sua pasta. O "imposto do cheque", como foi apelidado, tributava praticamente qualquer operação financeira realizada no País. Atravessou, com mudanças de alíquotas para cima e para baixo, boa parte dos mandatos de FHC e Lula. Chegou a gerar, em alguns momentos, mais de R$ 30 bilhões anuais para os cofres públicos. Só foi extinta por decisão do Senado, em 2007, em meio a protestos do governo federal.
A CPFM, durante sua existência, foi muito além de gerar caixa para programas de saúde. O modo de tributação do "imposto do cheque" foi o embrião dos procedimentos que permitem hoje ao governo federal acessar praticamente todas as informações econômico-financeiras dos contribuintes brasileiros. Foi a partir dos cruzamentos de informações dos dados de arrecadação da CPMF com os valores declarados pelos contribuintes que o governo descobriu um modo bastante eficiente de combater a sonegação. Até aí, bom para quem fiscaliza, melhor para quem arrecada. Mas a mesma ferramenta, cujo uso foi autorizado pelo governo federal em 2000, não deixou de ser usada com o fim da CPMF, sete anos depois.
Os cruzamentos de gastos com cheques, movimentações financeiras e cartões de crédito continuam a pleno vapor pelos órgãos de arrecadação federal. Não há gasto, compra ou investimento que escape aos atentos computadores da Receita Federal. Numa democracia estável, onde haja garantias de defesa a seus cidadãos, a medida é benéfica. Mas uma estrutura dessas, nas mãos de um tirano ou de um líder com vocação ditatorial, tem todos os predicados necessários para se converter numa devastadora máquina destinada a perseguir e destruir inimigos, adversários políticos ou quem se colocar em sua frente.
Da mesma forma que o cruzamento de dados colocado em prática pelo governo para garantir a arrecadação da CPMF transformou-se numa complexa rede de informações que monitora e acompanha todos os gastos do contribuinte, o chip imposto por Kassab aos proprietários de veículos da capital coloca-se perigosamente no limite do aceitável - e muito além do que seria desejável. As mesmas informações capazes de garantir um trânsito mais seguro e ordenado podem igualmente resultar numa absurda intromissão do Estado em nossa vida.
Sabe-se, desde já, que todas as informações dos chips automativos serão compartilhados pelos agentes de trânsito, pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e pela Polícia Militar. Não é de se duvidar que órgãos de inteligência ou mesmo policiais corruptos possam, a partir das antenas e chips de Kassab, acessar literalmente todos os itinerários dos veículos da Capital, desnudando detalhes sobre horários, hábitos e comportamentos de seus condutores, que não terão qualquer opção de desabilitar o referido "monitoramento". É via de mão única, sem retorno à vista.
No romance 1984, o autor inglês George Orwell antecipa as desgraças de uma sociedade totalitária onde toda expressão de individualidade acaba suprimida. No livro, o poder central de um governo fictício se utiliza de todas as formas imagináveis - fiscalização da vida privada, falsa propaganda, manipulação de informação, controle de acesso à imprensa e livros - para manter subjugada sua população. O poder é exercido pelo "Grande Irmão", um líder onipresente, que tudo sabe e tudo vê, mas que nunca foi visto em público e muitos personagens duvidam que exista.
O grande fetiche dos burocratas que agiam em nome do "Grande Irmão" na magistral obra de Orwell era a Teletela. O dispositivo parecia uma TV, só que era bidirecional. Assim como os cidadãos assistiam através dela a seus programas de TV, o aparelho também permitia que os agentes do governo espiassem dentro da casa das pessoas sem serem notados. A teletela do "Grande Irmão" - isso mesmo, o Big Brother da TV é inspirado nele - era, desta forma, uma perfeita maneira de espionar e manter sob controle a sociedade civil - ou o que restava dela.
Orwell lançou sua obra magistral em 1948, quatro décadas antes do período em que situa seu romance e poucos meses antes de morrer. Há muitas hipóteses que tentam explicar porque ele teria escolhido este ano específico para situar sua obra. A versão mais aceita é que em seu último livro o grande escritor inglês fazia um alerta desesperado, um grito contra o que, naquele tempo, já via como intromissão excessiva e indevida do Estado na vida de seus cidadãos.
Estudiosos de sua obra acreditam que Orwell tinha convicção de que os eventos descritos no romance não estavam tão distantes de seu tempo. Felizmente, para o horror descrito no livro, ainda faltam a nós alguns capítulos a percorrer. Resta a expectativa de que Jatene, Kassab, Lula e os futuros líderes deste País encontrem um tempinho para ler - ou reler, se for o caso - a obra de Orwell. Ainda há uma chance de evitar que Smith e O`Brien, os personagens principais, sejam identificados no comando dos principais organismos do Estado brasileiro. Mas o risco é grande. E nada ficcional.
<b>CORRÊA NEVES JÚNIOR</b>
<i>é diretor-responsável do Comércio da Franca</i> jrneves@comerciodafranca.com.br
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