O resgate da canjiquinha


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Há tempos ensaiava fazer este prato que junto à feijoada representa resgate histórico por trazer embutidos alguns lances da colonização de nosso país. Assim como os escravos nas senzalas usaram criatividade para reunir ao feijão preto as carnes desprezadas na casa grande, os mineiros (de início substantivo relativo aos trabalhadores da mineração, só depois gentílico) souberam aproveitar muito bem as sobras de milho. Socados no pilão, os grãos já muito secos, que só poderiam ser destinados aos animais, transformavam-se em pedacinhos minúsculos, passíveis de cozimento. Daí para misturar a ele o que estivesse à mão foi um pulo. A necessidade é criadora. Toucinho defumado, lingüiças, pedaços salgados de carne de porco, animal que era criado por quase todos os que faziam a sua roça, tudo era acrescentado à canjiquinha cozida e levado à mesa de refeição. O prato, muito proteico e saboroso, logo se tornou referência das casas mineiras, e especialmente para aventureiros que galgavam as montanhas atrás de minérios: sustentava, não precisava de nenhum outro acompanhamento, a não ser a couve que toda horta exibia. Folhas cortadas em tiras bem fininhas eram juntadas no final do preparo, à hora de ir à mesa, para manter a cor verdinha e não amarelar. Encontrei canjiquinha na feira livre, naquela cor linda que é o amarelo-ouro. Por lá também achei a costelinha, o bacon, os tomates, a cebolinha verde fininha que não via mais. Com estes elementos e uma enorme saudade de minha mãe que sempre se referia a este prato como alimento de um tempo onírico, o da sua infância em Barro Preto, fui para a cozinha e ousei a receita, pautando-me por lembranças mas também pela técnica de Olivier Anquier. Chef francês, patissier, ex-marido da atriz Débora Bloch (currículo básico), ele tem um programa de tevê e um site de culinária onde às vezes destaca as preciosidades do Brasil. Esta receita de canjiquinha com costelinha exibe a assinatura dele. Divaldo Pereira, o fotógrafo que fez as fotos que ilustram a página hoje, experimentou e gostou. Também Elza, que cuida de meu apartamento e me acrescenta conhecimentos, fez muitos elogios a esta comida de mineiro. “Trembão”, brincaram comigo. Uma coisa é importante frisar, antes que você se aventure nesta. A consistência do prato é que lhe confere a maior singularidade. A textura é quase indescritível: fica longe do angu e da polenta, também não se aproxima da sopa, embora seja caldeado. O que me vem à memória em termos de comparação é o sagu, pois o amido do milho faz a ponte entre a solidez dos grãos. Os acompanhamentos hoje podem variar muito. Andei conversando com mineiros do Desemboque que me falaram preferir a canjiquinha com cambuquira. Os de São Gotardo espremem gotas de limão no prato já pronto e dizem que sem isso não tem graça. Os de Montes Altos gostam de misturar caldo de feijão. Sem falar do pessoal do Triângulo, que vão além da costelinha, como os antigos moradores, e botam na panela todos os embutidos que encontram. Numa coisa todos são unânimes: tem de ter pimenta, pouca ou muita, mas cumari. Se o leitor (descobri que tenho alguns leitores por aqui) estiver inspirado e se a leitora quiser testar, a partir desta receita básica poderão criar as suas, fazendo os seus acréscimos. O divertido na cozinha é a experimentação. Como nos laboratórios e nos ateliês. Vamos lá. Deixe a canjiquinha de molho na véspera. No dia, cozinhe com pitada de sal e folha de louro até ficar macia, o que deve levar meia hora. Enquanto isso, refogue a costelinha cortada em pedacinhos, temperada com alho, sal, limão, colorau e pimenta também na véspera. Junte cebolas e tomates cortados em pedaços miúdos. Cubra com água e deixe cozinhar até amaciar. Reúna então a canjiquinha, mexa e deixe no fogo mais dez minutos, para que o milho tome o gosto da carne. Corte o bacon em cubinhos e frite em frigideira. Escorra em papel absorvente. Coloque a canjiquinha em travessa, salpique com bacon e cheiro-verde. Pode servir. No prato fundo e com colher, claro. SAIBA MAIS Veja como reconhecer e diferenciar temperos, aprendendo a fazer misturas especiais. Basta acessar o Blog Receitas da Sônia - http://gcnreceitas.wordpress.com

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