<p>A médica pediatra Márcia Beani Barcellos acompanhou desde o nascimento a pequena Marcela de Jesus Ferreira, bebê sem cérebro de Patrocínio Paulista que morreu no último dia 1º de agosto após viver 1 ano e 8 meses. Com ela, afirma ter criado uma relação especial e afirmou ter sentido muito a morte da criança, com quem teve total atenção. Durante os cinco primeiros meses que Marcela passou internada dentro da Santa Casa de Patrocínio, a médica a visitava quase que diariamente. As visitas também foram constantes na casa onde a família morava, no bairro Marumbé, em Patrocínio. Quando não podia ir, sempre telefonava.</p><p><br />Nesta entrevista, Márcia Barcellos descreve os últimos momentos ao lado de Marcela e o que sentiu com a sua morte. Detalha, ainda, que o que a matou não foi a anencefalia e sim o fato de ela ter aspirado leite, o que ocasionou a pneumonia que complicou seu quadro. Se não fosse esse incidente, segundo Márcia, ela ainda poderia estar viva. “A Marcela sempre me surpreendeu. Apesar de saber que o estado dela era grave, eu tinha esperança que ela sairia dessa”. A médica fala ainda sobre o respeito e a admiração que sente por Cacilda Ferreira, mãe do bebê. “Não sei de onde ela tirou tanta paz e tranqüilidade para enfrentar tudo isso”.</p><p><br />Para Márcia, a criança era um caso fora dos padrões da medicina. Ela afirma que já acompanhou outros anencéfalos, mas nunca um havia resistido tanto tempo. “A Marcela foi mesmo uma raridade e foi triste ter acontecido isso agora. Há meses ela não tinha nenhuma intercorrência médica”. Neste ano, a menina teve pequenos problemas, comuns a todas as crianças, como a reação a uma vacina que tomou e uma gripe. Com acompanhamento médico simples, ela melhorou e voltou à rotina.</p><p><br />Um dos assuntos que mais emocionam Márcia, segundo ela própria, é que Marcela, pelo histórico de anencéfalos, viveria somente horas, dias ou no máximo semanas. Participante de cada fase de vida da criança, acredita que os esforços valeram a pena.</p><p><br />Marcela morreu na noite do último dia 1º de agosto, de parada cardiorrespiratória, às 22 horas, na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) da Santa Casa de Franca. Foi enterrada na tarde do dia 2 de agosto no Cemitério Municipal de Patrocínio Paulista.</p><p> </p><p><strong>Comércio - Como a senhora recebeu a notícia de que Marcela estava doente?<br />Márcia Barcellos -</strong> Fiquei sabendo que ela estava na Santa Casa de Patrocínio Paulista com dificuldades para respirar. Era por volta de 10 horas. Eu estava no meu consultório e por telefone mesmo pedi que fosse feito um raio-x de tórax. Infelizmente foi diagnosticada uma pneumonia e velamento total de pulmão direito. Fui até o hospital e conversei com a Cacilda (Ferreira, mãe de Marcela). Ela me disse que tinha dado leite para a criança por volta das 7 horas na sonda e, logo em seguida, ela aspirou. Como a Marcela foi ficando roxinha, por volta das 10 horas ela procurou a Santa Casa. Quando eu a vi percebi que ela estava sofrendo para respirar e então ela foi entubada. Comecei a providenciar uma vaga na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) na Santa Casa de Franca. Por volta do meio-dia, ela foi transferida, porque tinha necessidade de um aparelho para mantê-la respirando. Infelizmente, por volta das 22 horas (do dia 1º de agosto), ela começou a ter falência (de órgãos) e parada respiratória. Fiquei arrasada.<br /></p><p><strong>Comércio - O que a senhora sentiu naquele momento?<br />Márcia Barcellos -</strong> Foi um susto. Até porque ela não morreu por causa da anencefalia e sim porque ela aspirou o leite e teve pneumonia. Marcela teve aspiração maciça de leite. O pulmão dela velou inteiro. Fiquei arrasada. Por ter acontecido isso e porque quanto maior a criança menores são as possibilidades de vomitar e aspirar o leite. Não que seja impossível, mas a Marcela há muito tempo não tinha nenhuma intercorrência médica. Ela estava bem instável nos últimos meses. Ela sempre me surpreendeu.<br /></p><p><strong>Comércio - A senhora já tinha se envolvido tanto com um paciente como aconteceu com a Marcela?<br />Márcia Barcellos -</strong> Com os pacientes crônicos sempre tenho um maior apego. Fico muito ligada a eles. Eu sempre me comparo com uma mãe que tem vários filhos e que um tem uma patologia. Com aquela a ligação é maior. Com a Marcela transcendeu a relação de médico e paciente. Além dos cuidados médicos que eu tinha com ela, conheci a história da família. Neste caso, vi o exemplo de fé e esperança e de aceitação da mãe.<br /><br /><strong>Comércio - Como foi a primeira vez que a senhora viu a Cacilda?<br />Márcia Barcellos -</strong> Quando a Marcela nasceu eu estava esperando ver uma criança com anencefalia que estivesse até morta. Eu não esperava encontrar um bebê respirando. E quando cheguei à Santa Casa, vi que o nenê estava respirando. E eu procurando ele para dar o atestado de óbito. Quando a vi pela primeira vez, eu não tinha o diagnóstico de exames, mas apenas a história do pré-natal. Eu pedi para que a criança não fosse levada até a Cacilda porque eu pretendia falar com ela antes. Queria explicar sobre o caso e dizer que seria melhor se ela não fosse colocada para amamentar porque ela tinha uma fenda palatina totalmente aberta na boca. Era para amamentar por sonda. Além disso, a gente esperava que ela fosse sobreviver apenas alguns minutos. Nesse meio tempo me chamaram na portaria para ver outra criança que tinha chegado. Quando eu voltei a Marcela não estava mais onde a tinha deixado. Eu achei que ela tivesse falecido. Me informaram que ela estava com a mãe. Na hora fiquei muito brava porque eu tinha pedido para não levá-la até a mãe. Entãome contaram que a Cacilda tinha até chamado o padre para fazer o batizado da nenê. <br /><br /><strong>Comércio - A senhora queria preparar a Cacilda para ver a criança?<br />Márcia Barcellos - </strong>Quando uma criança nasce com alguma má-formação a família leva um choque, mesmo sabendo do diagnóstico. É uma situação de estresse total. No caso da Cacilda não. Eu encontrei uma mãe sorrindo, com um bebê nos braços - achando ele o mais lindo do mundo - e ainda amamentando. Aquela cena mudou a minha maneira de enxergar a situação.<br /></p><p><strong>Comércio - O que mudou na sua vida profissional e pessoal após a Marcela?<br />Márcia Barcellos - </strong>Tudo. Antes da Marcela eu pensava diferente. O médico é muito cético. A minha intenção era chegar na Cacilda e dar o diagnóstico da criança e dizer que infelizmente ela não teria muito tempo de vida e que talvez fosse melhor que não amamentasse. Eu nem queria que ela ficasse com a neném para evitar que ela tivesse um choque do envolvimento. Geralmente é o que acontece no dia-a-dia com pais que têm crianças com má-formação. Com a Cacilda foi o contrário. Ela estava olhando para a criança com aquela cara mais feliz. E foi esse olhar da Cacilda que me fez perceber que minha missão ali não era colocar parâmetros do que deveria ser feito e sim cuidar e respeitar a vontade da mãe. Aí fui saber que ela já conhecia o diagnóstico da criança e mesmo assim quis levar a gravidez adiante. Ela queria ficar perto da criança o tempo todo. A Cacilda acabou direcionando o que eu deveria fazer e não o contrário. Foi surpreendente, porque a Marcela conseguiu deglutir mesmo com a fenda aberta. Assim a gente foi mantendo a criança dentro do hospital e foram cinco meses com cuidados diários. Eu nunca tive um paciente internado por cinco meses com visita diária. Fora a parte médica, passei a ver todo o carinho da mãe e o apoio que as pessoas deram a ela. É maior que a medicina. Entra a fé, a esperança, lição de vida e de otimismo de uma mãe. Eu melhorei muito como ser humano.<br /></p><p><strong>Comércio - O que a Marcela te ensinou?<br />Márcia Barcellos -</strong> Quando o médico se forma acha que pode fazer prognóstico de tudo e estatística de quanto um paciente com uma doença grave sobreviverá. Eu já tinha uma certa reticência a isso porque tive pessoas próximas a mim com problemas sérios de saúde que colegas meus fizeram previsões e erraram. É muito complicado fazer prognóstico de doença grave porque se fecham todas as janelas de esperança da família. A Marcela reforçou mais ainda a idéia de cuidar do ser humano sem fazer previsões de nada. Todas as vezes que tentava prever alguma coisa em relação a ela eu errava. Então parei de falar sobre isso.<br /></p><p><strong>Comércio - A senhora imaginou que um dia ela fosse deixar o hospital e se tratar em casa?<br />Márcia Barcellos -</strong> Eu nunca pensei que fosse conseguir dar alta para a Marcela. Na verdade eu demorei tempo demais para aceitar a possibilidade da Marcela ir para casa. Tive muito tempo para pensar e para treinar a mãe com os cuidados médicos e de como alimentá-la. Para que isso pudesse acontecer, pedi a Cacilda uma casa próxima ao hospital que fosse arejada e também um concentrador de oxigênio. Ela conseguiu tudo o que eu pedi. Só quando vi que ela estava treinada foi que tive coragem de dar alta. Felizmente foi muito tranqüilo.<br /><br /><strong>Comércio - Se a senhora pudesse voltar no tempo faria algo diferente no tratamento da Marcela?<br />Márcia Barcellos -</strong> Não. Nem eu nem a Cacilda ficamos levantando bandeira sobre como uma mãe de uma criança anencefálica deve agir. Faça isso ou aquilo porque é o melhor. Isso vai da consciência de cada mãe que está passando por isso. Como médica, sempre fiz tudo o que podia para proporcionar a ela a melhor qualidade de vida. Eu passei a enxergar a Marcela com os olhos da mãe. Ela recebeu todos os cuidados médicos. Era como se fosse uma criança com todas as possibilidades. Fiz tudo o que eu podia. <br /></p><p><strong>Comércio - A Cacilda acreditava que era um milagre o fato da Marcela ter sobrevivido desde os primeiros dias de vida. A senhora também acredita nesse aspecto religioso ou só crê na medicina?<br />Márcia Barcellos -</strong> É muito difícil fazer uma comparação. Na literatura médica eu não conheço crianças com anencefalia que tenham sobrevivido tanto tempo. Caso como o da Marcela, que tinha o tronco cerebral, não conheço nenhum semelhante. Então, se for explicar o fato de uma criança com o tronco cerebral ter vivido tanto tempo, não dá. Não temos outros casos semelhantes. Ela realmente foi uma raridade.<br /></p><p><strong>Comércio - A senhora, a exemplo de Cacilda, levaria à frente a gravidez de uma criança anencefálica?<br />Márcia Barcellos -</strong> Antes da Marcela eu não sei como agiria porque isso depende do coração de cada mulher. A mãe que faz o que o coração manda fica em paz. Hoje, com certeza, sim. Porque eu me envolvi muito com a Marcela. Até isso mudou.<br /><br /><strong>Comércio - Acha que a Cacilda conseguirá voltar a ter um dia-a-dia normal?<br />Márcia Barcellos -</strong> Com certeza. Ela é bem informada. Não era aquela católica fervorosa. Ela sabia que a Marcela era um presente que Deus deu a ela, mas era muito consciente do que estava acontecendo. Todos que iam visitá-la saíam felizes. Era ela que dava força. Quando a Marcela estava na UTI, na Santa Casa de Franca, eu tentei confortá-la dizendo que ia dar tudo certo. Ela me disse que “tinha cuidado da filha e que tinha feito tudo o que podia e que seria feita a vontade de Deus”. Eu fiquei muito apavorada quando fiquei sabendo que a Marcela estava passando mal e ela sempre muito serena do lado da filha dela. É incrível. Eu não sei de onde a Cacilda tira tanta paz de espírito assim. <br /></p>
Fale com o GCN/Sampi!
Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.