ARTIGO

A dor que não nasceu com a gente


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Nem toda dor começa em nós, algumas vêm antes, muito antes. Nascem no silêncio das gerações que nos antecederam. Surgem de perdas que não foram choradas, traumas que não puderam ser elaborados, segredos guardados como quem guarda uma ferida aberta. Sem querer, herdamos esses fragmentos de histórias mal resolvidas.

Às vezes, a angústia aparece sem motivo claro. Uma tristeza que chega do nada. Um medo que não combina com a nossa realidade. Um peso que ninguém vê, mas que nos acompanha por dentro. E então buscamos respostas: será que estou exagerando? Será que estou quebrado? Mas talvez o que esteja se manifestando não seja um defeito, e sim um pedido. Um pedido antigo, algo que precisa ser reconhecido, lembrado, acolhido.
Muitos tentam apagar esse incômodo com distração. Preenchem o dia com compromissos, mergulham nas redes sociais, colocam um sorriso por fora enquanto tudo lá dentro segue apertado. Mas a dor que vem de longe não desaparece com barulho, ela precisa ser ouvida, ela pede escuta, ela só quer ter o direito de existir.

Em famílias marcadas por silêncios, perdas ou exclusões, é comum que uma geração carregue o que a anterior não conseguiu elaborar. Uma avó que perdeu um filho e nunca falou sobre isso. Um pai que cresceu sem saber quem era sua mãe. Um tio que foi afastado e virou assunto proibido. Essas lacunas não somem, elas se transformam em emoções cruas que viajam no tempo, atravessam histórias e chegam até nós em forma de sintomas, padrões repetitivos, bloqueios emocionais.

A gente cresce tentando ser forte, tentando dar conta de tudo, mas tem dias em que não sabemos explicar o porquê do cansaço. Nem sempre o peso vem daquilo que estamos vivendo agora, às vezes, estamos tentando equilibrar o que não era nosso para carregar, estamos tentando consertar ausências antigas, preencher buracos que não começamos, mas herdamos.

A boa notícia é que existe uma chance de mudar esse ciclo e ela começa pelo olhar. Quando conseguimos enxergar essas dores com respeito, sem julgar nem minimizar, algo se transforma. O que era confuso começa a fazer sentido, o que parecia fraqueza passa a ser compreendido como sobrevivência. A dor não quer nos afundar, ela quer nos lembrar de algo que ficou perdido pelo caminho.

Olhar para o passado com compaixão não significa viver preso a ele, mas significa reconhecer que, para seguir em frente, às vezes é preciso voltar. Não para sofrer tudo de novo, mas para dar nome ao que ficou sem voz. Para devolver a cada história o lugar que lhe pertence e para separar o que é nosso do que nunca foi. E esse gesto não tem nada de fraqueza, mas ele é na verdade um movimento de força interior, de coragem, porque é mais fácil seguir ignorando, mas escolher sentir é uma forma profunda de libertação.

Nesse processo, nasce uma força diferente, a força de quem entende que não precisa mais repetir o que machucou. A força de quem decide não passar adiante o que recebeu com dor. A força de quem escolhe ser o ponto de mudança. Quando nos damos essa chance, algo dentro de nós se reorganiza. E mesmo que a vida siga com suas imperfeições, ela se torna mais leve.

Curar-se não é apagar o passado, é dar sentido a ele, é fazer as pazes com o que foi e abrir espaço para o que pode ser. É libertar não só a si mesmo, mas também as próximas gerações. É transformar a dor em compreensão e a compreensão em alívio. É entender que nosso papel não é carregar o sofrimento de quem veio antes, mas sim reconhecer o quanto ele pesou e escolher seguir com mais consciência.

Porque quando a dor é escutada, ela encontra paz e com ela, a gente também. E às vezes, é só isso que ela queria desde o começo: ser vista, ser sentida, ser finalmente acolhida e uma vez acolhida, ela não precisa mais gritar.

Com Carinho, Fabiane Fischer.

Fabiane Fischer é especialista na recuperação de dependentes químicos, abusos e compulsões.

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