
Tratamos, na última semana, da impressionante atualidade dos personagens míticos de Homero, que simbolizam e exprimem, para o bem ou para o mal, valores absolutos e de conteúdo ideológico palpável.
Na verdade, exprimem-se nos mitos anseios múltiplos de caráter permanente e coletivo, muitas vezes subconscientes. Essa é uma tendência própria do ser humano, em todos os tempos. Mudam as formas e as representações, mas os problemas fundamentais permanecem os mesmos.
Uma área do conhecimento que trabalha muito com os mitos e aprende a manipulá-los habilmente é a da propaganda ou, em termos mais modernos, do marketing. Qualquer pessoa que tenha feito curso de marketing sabe que quando se oferece um produto, na realidade o que se está vendendo é uma ideia, uma sensação, um valor abstrato e absoluto simbolizado e expresso por aquele produto. A agência de viagens em cruzeiros oferece, é claro, suas passagens; mas o comprador na realidade compra o status, a sensação de riqueza, a sensação de segurança e plenitude que a viagem em navios de luxo produz. Quem compra uma casa de campo, na realidade busca o conforto, a tranquilidade e o bucolismo e a paz que, simbolicamente, em sua mente se associam à casa de campo. Quem compra um automóvel do ano, de fato procura a sensação de sucesso e o prestígio que a posse do carro do ano normalmente exprime.
O curioso é que esses padrões vão mudando, de acordo com as modas, as tendências, os costumes, mas os grandes mitos permanecem. Um exercício interessante é pegar, em qualquer sebo, revistas dos anos 1940 ou 50 e analisar as propagandas de produtos oferecidos, observando quais as ideias, quais os "absolutos" que estavam sendo oferecidos. Não são muitos diferentes dos de hoje e de sempre.
Outro aspecto interessante a destacar é o da cultura do corpo saudável, preocupação universal em todos os tempos. Atualmente, considera-se como padrão de beleza um corpo esguio. Qualquer gordurinha extra deve ser banida. Por ação ditatorial da mídia, tal modelo é imposto a todos, homens e, sobretudo, mulheres. Em outros tempos, porém, isso era muito diferente. Hoje, de modo geral, comemos mal e demais, mas tempos houve em que havia escassez de alimentos. Então, ter gorduras acumuladas era ótimo sinal, já que significava maior resistência quando chegasse o tempo da carestia, e maior resistência também diante de doenças infecciosas que eram frequentes e, muitas vezes, mortais. Ficava feio para uma mulher ser magrela. As gordas eram prestigiadas, elas é que tinham vez.
Quem pesquisa em arquivos antigos encontra, por vezes, coisas engraçadas. Na fronteira entre Portugal e Espanha ocorreu, no século XVIII, uma "troca de princesas", em decorrência de acordos políticos que combinavam casamentos entre as dinastias dos dois reinos. Na fronteira, trocavam-se as princesas, geralmente meninas de 8 ou 10 anos, que iam completar sua educação no outro país, já noivas de príncipes que mais tarde herdariam as coroas de suas nações. A portuguesinha que ia para Madri era gorda e rechonchuda, como se apreciava no tempo; e a espanholinha, destinada a Lisboa, era magra, angulosa e ossuda (exatamente como se exige das modelos de nossos dias). A população local, que assistiu à troca, não gostou e começou a reclamar. Comentava que era injusto os espanhóis, sempre aproveitadores e exploradores, "darem uma sardinha e levarem em troca uma tainha"... É curioso que o mesmo absoluto da saúde física e da beleza que outrora fazia as moças desejarem ser gordas hoje as faz anoréxicas. Mudaram os paradigmas mas o mito permanece o mesmo.
Os mitos têm relação imediata com as utopias, outro assunto que mereceria estudo e reflexão. Todos sabemos que a morte é certa e a medicina jamais alcançará a imortalidade do homem. Sem embargo disso, a medicina só avança na medida em que visa e persegue a utopia irrealizável de uma vida imortal. Todos sabemos que a juventude é passageira, mas a utopia da eterna juventude, prolongando ao máximo a vida útil de homens e mulheres e retardando quanto possível a velhice, sem dúvida é utilíssima. A pobreza, a guerra e a fome são inevitáveis, mas devemos ter sempre como meta a utopia de eliminá-las. São utopias, sim, mas exprimem mitos muito profundos e entranhados na natureza humana.
Armando Alexandre dos Santos é doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Piracicabana de Letras e do IHGP.