ARTIGO

Uma decisão sem culpa


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Emocionei-me ao ler a carta de despedida do poeta Antonio Cícero na tarde de ontem, divulgada pela Academia Brasileira de Letras, a qual ele fazia parte.

A notícia de sua partida já havia me pegado de surpresa pouco antes, mas me espantei ao descobrir que a causa foi pela opção de uma morte assistida na Suíça.

Cícero, que enfrentava o Alzheimer, tomou a decisão antes que fosse tarde demais para se fazer isso. Ele dizia ter dificuldade de reconhecer as pessoas e já não podia realizar as coisas que ele mais amava e que faziam sentido em sua vida, como escrever poemas, ensaios filosóficos e ler, sua atividade favorita.

Em suas palavras, “espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”. A carta foi dedicada aos amigos a quem respeitosamente deixou uma despedida breve e, de certa forma, uma satisfação pela sua atitude que, com certeza, não teve a intenção de ser egoísta. “Estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.”

A decisão de Cícero me tocou em alguns pontos e me peguei surpreso, sentindo aquela boa e velha “culpa católica”, de achar que não podemos fazer o que queremos e nos contentar com a tal “vontade de Deus”.

Fazer o que se quer, desde sempre, é um ato de coragem. E não necessariamente significa egoísmo. Levamos a cultura religiosa de nos sentirmos culpados pelas nossas decisões conosco, vida afora, acreditando que merecemos sofrer para alcançar algo maior -- que nem sempre chega.

O sofrimento é supervalorizado em nossa sociedade, e isso é substancialmente colocado em um altar, como se, ao sofrer em vida, fôssemos ter um destino melhor após a morte, entre todas as centenas de explicações e promessas que o “lado de lá” nos oferece.

Pessoas como Antonio Cícero são exceções a essa realidade e as caminhadas libertárias por suas próprias histórias incomodam a quem segue a regrinha do jogo da vida. A começar pelo ato heróico de ser poeta, em um mundo cada vez mais com menos espaço para a poesia.

Quer irrelevância maior para uma sociedade entediada com suas telas de celulares e vídeos de dez segundos nas redes sociais do que um livro de poesia?

A vida de Antonio Cícero era reservada. Apesar de seu ofício dentro do universo das artes, sendo ele um grande compositor e parceiro de estrelas da nossa música, principalmente com a irmã, Marina Lima, ele não era uma celebridade. Muito pelo contrário.

Talvez, por isso mesmo, entendo que ele tenha feito o que quis durante sua passagem por esse mundo, sem precisar prestar conta para ninguém. Não seria diferente em sua decisão final.

A escolha de Antonio Cícero em finalizar sua jornada, ter poder sobre seu próprio destino que já estava traçado por uma doença cruel, é só dele.

E isso não significa que devemos comparar essa solução de um homem que se encontrava próximo do fim natural de sua vida, como forma de evitar um sofrimento desnecessário, ao suicídio derivado de uma saúde mental em frangalhos que acomete muitos em todo o mundo, principalmente em jovens. Esses precisam de outro tipo de ajuda.

Não é preciso explicar que são assuntos completamente diferentes, não é mesmo?

O suicídio assistido, realizado pela Associação Dignitas, em Zurich, é regulamentado desde 1940 e outras personalidades como o cineasta Jean-Luc Godard já recorreram ao método.

É triste saber que o mundo fica menos lúdico com a partida de Cícero que compôs a letra de uma das minhas músicas favoritas, musicada e cantada por Adriana Calcanhotto: “Inverno”.

“...esqueci que o destino/ Sempre me quis só/ Num deserto sem saudade, sem remorso só/
Sem amarras, barco embriagado ao mar…”

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