ARTIGO

Triste fim de um regimento histórico


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Foto: reprodução Freepick

O exército britânico, sem a menor dúvida, ainda constitui na atualidade um padrão de excelência no seu gênero. Não quero deixar de compartilhar com meus leitores o curioso depoimento que ouvi de um amigo norte-americano, jornalista que viveu muitos anos na Escócia, sobre a organização interna do sistema militar britânico.

Lá, diferentemente de outros exércitos, é incentivado que os regimentos sejam constituídos, tanto quanto possível, por amigos, vizinhos e até parentes. Nos regimentos escoceses, irlandeses e do País de Gales, preferencialmente são colocados juntos membros do mesmo clã, pois lá ainda perdura o sistema clânico herdado dos celtas. Mesmo na Inglaterra, onde a população não está distribuída em clãs, tanto quanto possível são companheiros de armas parentes ou amigos de infância, pessoas que cresceram juntas e cujas famílias se conhecem, ou, conforme o caso, da mesma profissão. Nas duas Guerras Mundiais, lutaram Batalhões de Estudantes, de Pedreiros, de Mineiros etc. O critério aplicado é o de procurar valorizar, entre os companheiros de armas, a respectiva origem, com vistas a fortalecer sua unidade moral.

Essa característica das forças armadas britânicas confere um “esprit de corps” incrível aos combatentes. Todos lutam tendo ao lado não um desconhecido, mas alguém a quem se sente ligado por elos muito próximos. Se um soldado é ferido, os seus companheiros sentem e reagem como se um irmão devesse ser vingado...

Acresce que os regimentos, lá, são ainda hoje em larga medida hereditários, tanto nos seus comandos quanto nos seus oficiais e, mesmo, entre sargentos e praças. O militar, qualquer que seja seu nível hierárquico, serve num regimento em que já lutou seu pai, seu avô, seu bisavô etc. etc. - até o século XVIII pelo menos. Isso faz com que cada elemento se sinta integrado ao regimento não somente no espaço, mas também no tempo. Ele não pode fazer um mau papel, porque estaria desonrando toda a sua estirpe. Num país em que todos têm e cultuam a tradição (não só os reis e os nobres, mas todos os britânicos têm a sua tradição e sabem honrá-la), compreende-se o significado profundo que tem essa vinculação familiar e afetiva, através das gerações.

A longa convivência interfamiliar assegura também uma vinculação muito forte entre oficiais e soldados. Mesmo respeitadas as hierarquias e guardadas as distâncias com rigor (e os ingleses são exímios nisso), estabelecem-se laços de proximidade entre comandantes e comandados, entre oficiais e praças. Todos se sentem, na verdade, como fazendo parte de uma espécie de família.

Narro aqui um episódio, ao qual meu amigo presenciou pessoalmente. Ele foi convidado a assistir a uma revista, passada num regimento pelo seu coronel.

Todos estavam impecavelmente postados, com o maior rigor militar. O coronel ia de soldado a soldado, tratava cada um pelo nome e fazia algumas perguntas sobre a mulher, os filhos, os estudos de cada um etc. etc. O coronel conhecia intimamente cada homem sob seu comando. A um soldado - meu amigo, que como convidado de honra estava acompanhando o coronel dois passos atrás dele, ouviu perfeitamente - o coronel chegou a perguntar se a sogra dele estava melhor do reumatismo...

O coronel fazia as perguntas mais afetuosas com voz firme e seca, “more militari”, sem manifestar emoção, e todos se limitavam a responder, também de acordo com a praxe militar “yes, Sir”, “no, Sir”, “thanks, Sir”, sempre perfilados e sem manifestar a menor emoção. Tudo muito britânico, portanto... Mas, quando terminou a revista e foi dada ordem de dispersão, estouraram num choro generalizado, soldados, sargentos, oficiais e o próprio coronel, todos se abraçando aos soluços.

Meu amigo não entendeu o porquê daquela atitude. Explicaram-lhe então que aquela tinha sido a última revista daquele regimento. Ele tinha assistido a uma despedida...

Era um regimento histórico, que tinha sido instituído na época da Guerra da Sucessão espanhola, em princípios do século XVIII. Participara das guerras desse século, depois das guerras napoleônicas, das guerras coloniais do século XIX, da primeira e da segunda guerras mundiais. Tinha história, tinha tradição. Mas naquele momento, o governo trabalhista de Tony Blair decidira extingui-lo como medida de contenção de despesas.

Essa circunstância explicava a explosão de soluços.

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