ARTIGO

Camões: a língua e a alteridade de Portugal

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 4 min

Luís Vaz de Camões retornou a Portugal em 1570, depois de 17 anos de lutas, trabalhos e sofrimentos no Oriente, para onde fora destinado a cumprir pena de degredo temporário. O motivo da condenação é que ele se envolvera numa briga durante uma procissão de Corpus Christi e chegara a ferir seu desafeto. Era um delito muito grave pela legislação da época, e sem embargo de o oponente o ter publicamente perdoado, seguiu-se a condenação.

Mas afinal retornado ao Reino, Camões consegiu que fosse, em 1572, publicado seu poema épico, que, segundo a tradição, tinha sido, pelo menos em parte, lido pelo próprio poeta ao jovem Rei D. Sebastião.

O monarca concedeu a Camões uma pensão, no valor de 15 mil réis anuais, a ser paga durante um triênio, podendo depois ser renovada. Embora habitualmente se afirme que era uma pensão muito reduzida, sabe-se, comparativamente com o rendimento de outras pessoas da época, que até seria uma pensão bastante razoável... se fosse paga com regularidade. Mas o pagamento não foi regular, o que teria feito Camões penar, nos últimos anos da vida, vitimado pela pobreza. Um escravo que trouxera do Oriente, de nome Jau, mendigaria nas ruas de Lisboa, segundo a tradição oral, para alimentar seu amo.            

Em 1578, o desastre de Alcácer-Quibir, com a morte de D. Sebastião e a perspectiva próxima de Portugal passar a ser governado por um monarca estrangeiro (no caso, Filipe II, de Espanha), abalou profundamente a saúde já combalida do poeta. Ele teria afirmado, então, que amava tanto a sua pátria que não somente tinha retornado a ela para nela morrer, mas para morrer juntamente com ela.

De fato, após o breve reinado do Cardeal D. Henrique, em 1580 Filipe tornou-se rei de Portugal, dando início a um período de 60 anos em que as duas coroas ibéricas estiveram unidas sob um mesmo soberano, da Casa d´Áustria. Conta-se que, enquanto o velho cardeal-rei agonizava, a gente do povo cantava, junto ao paço, uns versinhos ofensivos:

“Viva el-rei D. Henrique

No inferno muitos anos.

Pois deixou em testamento

Portugal aos castelhanos”.

Somente em 1º de dezembro de 1640 o Reino luso teria sua independência restaurada, sob a dinastia de Bragança.

Camões morreu quase ao mesmo tempo que a independência de Portugal, a 10 de junho de 1580. Foi sepultado como pobre, sem qualquer destaque. Os ossos que jazem no magnífico mausoléu do Mosteiro dos Jerônimos, muito provavelmente não são os do verdadeiro Camões. São ossos de um homem qualquer, desconhecido, que simbolicamente representam o maior poeta da nação e da língua portuguesas.

Durante os 60 anos de união ibérica, Camões adquiriu um prestígio enorme, se bem que paradoxal. De um lado, o rei Filipe II de Espanha (e I de Portugal), que era filho de uma infanta portuguesa e falava muito bem nosso idioma, promoveu duas edições de “Os Lusíadas”, e atribuiu oficialmente a Camões o título de “Príncipe dos Poetas de Espanha”. Com isso, não só procurava captar a benevolência de seus novos súditos, prestigiando o poeta máximo de Portugal, mas também intentava, de certa forma, incorporar às glórias da Espanha as glórias da nação portuguesa. Na ótica filipina e castelhana, a incorporação de Portugal à Espanha era definitiva.

Mas, por outro lado, naqueles 60 anos, precisamente Camões serviu para a afirmação da língua portuguesa, diferente da castelhana e ciosa de conservar alteridade e independência em relação à nação vizinha. Com sua literatura, Camões foi um marco divisor de enorme importância para que, naquelas seis décadas, Portugal não perdesse a noção muito clara de sua identidade nacional, de sua completa alteridade em relação a Castela. Sem Camões e sem “Os Lusíadas”, talvez o reino luso tivesse soçobrado no esquecimento de sua identidade, e desaparecido para sempre, reduzido à condição de mera província da grande Espanha.

O paradoxal é que Camões foi um poeta bilingue. Ele compôs a maior parte de sua obra em português e até determinou a incorporação, a esse idioma, de numerosos neologismos eruditos, derivados ou deduzidos do latim clássico; ele é, por isso, considerado a justo título um renovador e um fixador definitivo da língua portuguesa. Mas também escreveu muitas poesias líricas em castelhano castiço, como era comum entre os grandes intelectuais e literatos lusos do século XVI (inclusive Gil Vicente e Sá de Miranda).

Não estava de todo errado, pois, Filipe II ou I, quando o designou Príncipe dos Poetas de Espanha.

Concluo assinalando um parentesco pouco sabido no Brasil. Falei do poeta Francisco de Sá de Miranda. Poucos sabem que ele era irmão, ou melhor, meio-irmão de Mem de Sá, o terceiro governador geral do Brasil e fundador da cidade do Rio de Janeiro. Eram ambos filhos de um clérigo de Coimbra, de família ilustre, mas não muito observante de seus votos saerdotais.

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