ARTIGO

Outono: Mais da alma que da natureza

Por David Chagas | 17/04/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Procuro quem não tenha, pela outonal estação, paixão igual à minha. Todo ano espero Março por diferentes motivos, dentre tantos, saber que, em determinado momento, o sol dará, ao movimento da Terra, rumo tal que lhe permita em parte dela revelar, no hemisfério sul, onde nasci e vivo, o outono.

Hora de rever a vida de modo intenso. Com paciência e calma, como requer o instante, sussurrando aleluias e hosanas a Deus, como, num coro de anjos, louvar. Agradecer. O outono se instala.

Quintana chama as estações do ano, família desencontrada. Penso assim. Quando me acostumo com a passarada em festa no rito de acasalamento, o despontar de flores por todo canto, o sol esturricante abre-se em luz fazendo sentir o verão e dando, por fim, a primavera. Sorte ter nascido no Brasil porque flor e fruto há, por todo lado ao longo do ano, mesmo que clima arrevesado e chuva em excesso ou falta dela sejam impróprios para tanto. É a terra que tudo dá!

Exaurido pelo calor, o terceiro mês, a seu final, fechando verão com suas águas, traz o outono. Quando os balões e as fogueiras festejam a abastança, o inverno faz tiritar, não o coração, o corpo. Pena ser tão desigual, no invernal período, o tratamento entre os que, pela estação, trafegam.

Há que reconhecer a prudência de Deus no inverno brasileiro. Reconhece, com nitidez, os governantes alheios à distribuição de rendas, à divisão do pão, incapazes de dar-lhes, como ensina, eles mesmos de comer. Descumprem – e no inverno isto se evidencia – compromissos sociais assumidos, não traçam políticas públicas. Por sorte, o amor divino faz inverno não tão rigoroso, Há quem sofra. Há até mesmo quem morra no frio e dele. Menos que em outros lados.

O poeta gaúcho prossegue, dando luz a tudo isto: “O verão é um senhor gordo sentado na varanda reclamando cerveja. O inverno é o vovozinho tiritante. O outono, um tio solteirão. A primavera, em compensação, é uma menina pulando corda”.

Enquanto a menina não traz ao jardim a corda e brinca, vivamos o outono acolhidos, aninhados no colo do tio bondoso e solteirão.

Neste período, as manhãs, tecido aéreo, livre de armação, mal se erguem, convidam a que se guarde na retina, luz e brilho, menos fortes, mas tão mais nítidos que os apresentados dias antes. São manhãs de agora, quando o outono desponta. O sol, em movimento aparente, atingiu o equinócio de março, cortando o equador celeste, para dar ao dia e à noite igual duração. Desde então, alongou a noite e vai pouco a pouco, diminuindo o dia, oferecendo-lhe luz e brilho únicos. Os astrônomos ditam lições extraordinárias sobre o espectro eletromagnético, as propriedades da luz, a radiação.

Interesso-me, mas, em determinado momento, querendo entender, perco-me nas teorias apresentadas por me faltarem informações anteriores que, agora, seriam de extrema valia, as tivesse tido no tempo devido.  Então, sinto! Sinto o outono com o olhar, o olfato, o toque das folhas ao chão e a brisa que me toca a pele. Sentir sempre.

Permito-me alcançar, o que o tempo fez comigo, assistindo, nas repetidas lições de todo ano, ao que a natureza ensina com o percurso do sol, em passeio dado, durante meses e dias de um ano.

Quantas décadas para alcançar, na vida, este instante em que a luz parece envergonhar-se ao perceber que falta pouco para a noite descer! No giro das estações, o que espanta ao homem, embeleza o instante.

A natureza produz frutos. Chama para a colheita. Faz despertar rosas nos jardins dizendo que são de abril, como se, ao nascer do mês, fossem dele.

Tudo parece tratado com orgulho distinto. As flores, o amanhecer nos campos, os lagos, porque, na natureza, o “outono vem em fulvas claridades”. Na vida, não.

A portuguesa escritora é quem me cutuca a alma revelando, ao chegar da estação, para entrever que assim deveria chegar a outoniça idade. Há fulvas claridades, não nego, mas na vida, repara, diz o poeta, o outono toca a alma.

O amarelo ouro tão próprio do cair da tarde não se faz assim nos outonais dias da vida. O que por igual se mostra é o desfolhar das rosas nas estradas e o choro das saudades no coração.

Tenho, como Florbela Espanca, repetido a prece das Trindades. Dá-me conforto. Acorda-me para o real do sonho. Traz alguma esperança. Permite-me vislumbrar, com brilho de igual ou maior intensidade, as violetas, sem preocupar-me tanto com o arroxeado das cores, preservando a beleza da flor.

Nesta fase da vida o caminhar é lento e inseguro, muitas vezes. Kafka explica: “o caminho, varrido, volta a cobrir-se de folhas secas”. Não discuta. Aceite. Entenda como se fora, não uma folha que se desprendeu, mas uma borboleta amarela, embora vacilante, segue, não pousa.

 Nossa existência, ensina Buda, é transitória, como as estações. Tudo feito para durar certo tempo. Neste instante em que escrevo, por exemplo, chove.

Choverá, quando me lê?

Nuvens de outono fizeram assim para que os jardins se enfeitassem. É abril.

Chove, chuva, choverando... Não me desfaça a alma.

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