ARTIGO

Há quanto não te escrevo!

Por David Chagas | 13/02/2023 | Tempo de leitura: 4 min

O pensamento, por vezes, bem nos faz/ ao retomar o que nunca quis perder. / Mas dói. Quanto dói toda vez que a memória, / o perdido, insiste em revolver.

Nunca supus, tantos anos passados, pudesse a lembrança, recuperar a sensação penosa daquele instante. A dimensão do sentimento da morte, avaliar, só depois de conhecida. A separação inevitável, o peso da ausência, as lembranças pela casa, o tempero da sopa, a medição da febre em cada beijo dado, o gesto sem medida e necessário.

O caminhar solitário da cachorrinha amada, uivando no quintal, à procura da dona... a máquina de coser, os moldes desenhados sob medida para suas meninas, os antúrios, flores em espádice, espatas vermelhas e rosas, agora, por mais que admiradas, à procura do olhar cúmplice elogiando elegância, beleza e cor... A água parece não bastar para a sobrevida. Falta-lhes o olhar que abençoa, acarinha, enternece.

Naquela manhã distante – ou  noite que se armou naquela madrugada? – interminável, céu límpido, escolas inaugurando atividades letivas, as mãos da Indesejada. Soube ser gentil no gesto, mas soberana na ação. Ou como escreveu o poeta: cumpriu o objetivo e decretou: fim!

Este, o repassar da memória, hoje, cinquenta anos passados! Há quem esqueça a data. Não, entre nós. Permanece. Não há falta na ausência.

Quando, em dias turvos como aquele, a noite veio, não houve descanso, tamanho o peso da sombra.

Restou escrever: “Bemvinda foi partindo de mansinho / e mansamente foi chegando ao céu. / Não bateu. A porta, estava aberta. / Não pediu para entrar: Deus recebeu!”

Maria, a Mãe, no seu jeito próprio de ser, deu o sentido pleno de sua chegada e a razão de seu nome. Bemvinda. “Bem-vinda, filha, vem! Há muito te esperava.”

Sempre me ocupei de explicar a mim mesmo o nome de minha mãe. Já escrevi sobre isso. Gostava do jeito que encontrava para contar a astúcia do pai ao dar nome às pessoas, aos animais, aos textos que publicava, às coisas. O intuito, ao que parece, além da artimanha revelada, era popularizar o que parecia estranho aos ouvidos. Espécie de meme, como se diz agora. A seu tempo e a seu modo, também viralizava. Assim foi com o próprio nome da filha, com suas colunas em jornal, com sua presença nos ambientes em que se apresentava brincando com as palavras.

Pois bem, no seu jeito professoral de contar histórias, minha mãe sempre começava pelo nome dado ao cachorrinho pinscher, presente do pai, batizado Já-te-disse!

Um tormento, dizia ela, caminhar pelas ruas com o animalzinho, diminuto no corpo e ardido na fala. As crianças perguntavam pelo nome e acabavam por brigar porque desejavam tão somente saber o nome e se irritavam sempre que respondia: Já-te-disse!

Quando nos reunia para contar histórias de sua infância, entre risos e mágoas, chegava a seu nome com iguais argumentos. Sorte a minha ser mulher. Podem imaginar homem carregando este nome?

Assossegou-se – revelava - quando, crescida, conheceu melhor a razão. Dona Benvinda Fontes, amiga de meu avô, jornalista prestigiado e de renome por todo o estado, fez homenagem à amiga com ampliando ainda mais o sentido no rebuliço ortográfico feito no cartório.

Com as explicações de dona Benvinda, entendeu, então, a razão do M antes do V, que tanto trabalho dava, e ainda dá, na preparação de documentos e diplomas.

Numa das cartas que lhe deixou, o pai explica: a linguagem nunca é realista porque entre signo e referente há uma significação essencial. Ao escolher o nome, procurou ter nele tudo o que o signo quer dizer; acepção, apreço, reconhecimento.

Avançado em anos, meu avô, sábio, vivaz, dera o nome não só por desejar fosse bem-vinda à vida e ao mundo, mas para revelar acolhimento, amor e, por conhecer seu entorno, o desejo de que o mundo não a maltratasse jamais. Ledo engano.

Festejando o nascimento e a cria e dando ao nome o significado de seu contentamento, o jornalista revelou-se, em plena velhice, homem humano, pai exemplar, como se entendesse ser curto o caminho a trilhar com a filha.

Deus, o único a dar ponto sem nó, atento, deve ter concordado com as artimanhas do velho. A homenagem a dona Benvinda Fontes, provou, na excelência dos resultados escolares, primeiro, depois, nos filhos, o quanto Bemvinda fora bem-vinda ao mundo e à vida.

Sempre que me obrigo a soletrar o nome de minha mãe àqueles que querem a língua pura, devotos de regras e normas, insisto na defesa do sentido dado ao nome, não por ele, mas pelo significado encotrado na grafia do nome pelo velho jornalista, por sorte, nosso avô.

Hoje, não me interessa tanto a palavra que lhe dá nome. É saber que dela, ao nascer, fomos sendo, um a um, bem-vindos, apesar das mazelas do mundo e, com minhas irmãs, cada uma herdeira de alguma característica dela, mas todas com o brilho de sua inteligência e a correção de seu caráter, seguimos, na expectativa do futuro, acreditando ouvir sempre igual saudação feita por gente de bem: Bem-vindos!

A ela, entrego a flor. Quantas? Muitas, depositadas à luz de seu retrato, misturadas às palavras de respeito, de carinho, de amor. Fruto bendito de seu ventre de onde saltei para conhecer a vida agora, sei que descansa em paz, sorvendo nosso amor.

Não pode ver, suponho. Sente, no entanto, isto e muito mais, no perfume da flor.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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