ARTIGO

O trovadorismo, na memória dos povos

Por Armando Alexandre dos Santos | 13/02/2023 | Tempo de leitura: 4 min

A figura emblemática do trovador, surgida nos tempos medievais, atravessou os séculos e ainda hoje está presente na memória dos povos. Tenho certeza de que meu amigo Edson Rontani Jr., que sabe tudo sobre tradições culturais piracicabanas e brasileiras, por certo se lembrará dos versos iniciais de “O Trovador”, cantados por Altemar Dutra no início da década de 1960: “Sonhei que eu era um dia um trovador / Dos velhos tempos que não voltam mais. / Cantava assim a toda hora / As mais lindas modinhas / Do meu Rio de outrora...”

No Medievo, o trovadorismo marcou o início das literaturas europeias modernas, pois se exprimiu em linguagem popular fazendo uso de línguas novas, derivadas do latim antigo. Essas línguas, que no mundo neolatino receberam durante algum tempo a designação de romanços, marcam a transição do idioma raiz para as modernas línguas usadas nos vários países europeus.

No caso do português, há uma clara derivação do latim primevo. Discute-se o caminho seguido até chegarmos ao nosso idioma atual. Na minha tese de doutorado, que tratou de uma novela de cavalaria catalã do século XV (intitulada “Curial e Guelfa”), estudei esse processo, mas seria demasiado longo reproduzir aqui. Segundo alguns autores, o catalão medieval seria, até mesmo por razões geográficas, a “língua ponte” entre o latim e as novilínguas ibéricas - o português, o castelhano, o galego, o catalão moderno, o bable e o asturiano.

O trovadorismo se desenvolveu, historicamente, como forma literária típica de uma fase de transição. Quando falo em “fase de transição”, destaco que se trata de transição a vários títulos diferentes. De um lado, era a transição linguística, do latim original, ainda correntemente usado nos ambientes cultos, eclesiásticos ou leigos, para as novas línguas faladas pelos povos que iam, de per si, se constituindo e adquirindo características e especificidades próprias.

De outro lado, era a transição da Europa medieval antiga, predominantemente rural e com aglomerados populacionais reunidos em torno de castelos ou mosteiros, para as cidades maiores, já urbanizadas.

Por outro lado ainda, à urbanização da Idade Média, nos burgos, correspondeu uma imensa transformação do ponto de vista social e econômico, com o aparecimento de uma nova categoria de gente que habitava os burgos e que daria, mais tarde, início à burguesia; e correspondeu também, do ponto de vista cultural, a uma tendência para o desenvolvimento de uma cultura leiga, para não dizer laica, que foi pouco a pouco tomando lugar da anterior, a qual, por se dar sobretudo em ambientes monásticos, era predominantemente religiosa.

A difusão do ensino básico (hoje diríamos propedêutico) nos burgos, nos famosos “studia generalia”, esteve na origem das primeiras Universidades, criadas pela Igreja Católica no século XII e largamente desenvolvidas por ela no século XIII. Esses dois séculos marcaram o que Le Goff designou como o “segundo renascimento”, ou seja, a segunda era de grande desenvolvimento cultural e revalorização dos clássicos greco-latinos, verificada na Europa medieval.

O primeiro renascimento foi o carolíngio, realizado na passagem do século VIII para o IX, sob o influxo de Carlos Magno e do famoso monge Beato Alcuíno de York - homem cultíssimo que foi uma espécie de ministro da Educação de Carlos Magno e deixou marcas profundas em todo o desenvolvimento cultural do Ocidente. Deve-se a ele, por exemplo, a diferenciação das letras maiúsculas e minúsculas e a criação dos sinais gráficos de pontuação. Antes dele, tudo se escrevia em letras maiúsculas e seguidamente, sem mudar de linha e sem nenhuma pontuação. Somente pelo sentido se podia adivinhar que uma frase ou um período tinha acabado e outra frase, ou outro período, estava começando. Foi Alcuíno que propôs e instituiu, com apoio de Carlos Magno, um novo sistema de escrita e pontuação que foi usado na administração pública do reino dos Francos e do Império do Ocidente, restaurado no ano 800, e que usamos até hoje. Ele organizou equipes de copistas que recopiaram, na nova grafia, obras antigas (tanto religiosas cristãs como literárias e filosóficas da Antiguidade clássica) que se teriam perdido irremediavelmente sem esse trabalho sistemático, realizado em torno das chamadas Escolas Palatinas.

O terceiro renascimento foi aquele que geralmente designamos como tal, já no alvorecer da modernidade, ou seja, nos séculos XIV e XV. Seu epicentro se deu, como é bem sabido, na Itália.

Foi sobretudo no auge do segundo renascimento que se desenvolveu a literatura trovadoresca. Refletia a sociedade medieval leiga, das várias classes sociais, em sua mentalidade, em seus critérios valorativos, em suas idiossincrasias. É extremamente reveladora a esse respeito.

Num livro que publiquei em 2011 (“Dialética pró e contra as Cruzadas em documentos do século XIII”), analisei a obra de Rutebeuf, um trovador e jogral popular francês do século XIII, que viveu na região de Paris e gravitou em torno da corte do Rei São Luís IX. Seus versos refletiam bem a sociedade da época. E ele é, também, um exemplo típico (eu quase diria arquetípico) de trovador. Voltaremos a falar dele na próxima semana.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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