“Um grande nos faz bastante bem quando não nos faz mal”. (Beaumarchais)
Foi meu colega de Faculdade. Fazia o curso de letras. Assistia às aulas com relativa atenção, mas, fora delas, empenhava-se em ler filosofia: Pe. Teilhard de Chardin, Bertrand Russel, Miguel Unamuno, Martin Heidegger, Benedetto Croce, Karl Jasper foram alguns filósofos, entre outros, que fiquei sabendo serem seus preferidos, pois me passava cópias, dos fichamentos que fazia.
Era muito inteligente e um tanto misantropo. Jogava bem futebol. Era goleiro. Segundo o Fernandes, meu colega de clube, todo goleiro tem algo dos loucos, quando não o são totalmente. Heitor era dos bons, tanto ele como o irmão.
Embora levasse, de tempos em tempos, algum frango, por estar totalmente distraído, com certeza divagando com suas dúvidas filosóficas, não perdia a posição, pois nosso time imbatível sempre marcava mais gols do que levava.
Não era de muito conversar, mas comigo às vezes, se dispunha.
Costumava questioná-lo, pois tinha enorme curiosidade por suas inesperadas respostas.
- Porque você costuma sentar-se de manhãzinha no degrau da escada e fica lendo num lusco-fusco impróprio para a vista?
Pensava um pouco e dava-me curiosas respostas:
- Por que cada um tem seu jeito de ser. Assim como a flor não sabe que tem perfume e, com certeza não tem consciência da gente e nós temos dela, não sei por que tenho esse hábito, mas ele me satisfaz e eu não uso óculos, enquanto você usa.
- Porque você não se aplica mais em seu curso, ao invés de atirar-se com tanto empenho no derivativo da filosofia?
- Porque não tenho pressa e não acredito que as regras sejam verdades absolutas. Enquanto meus colegas aprendem apenas gramática, sem exercitarem-se na conversação, não vão conseguir falar. Aprendo na aula gramática, fora dela estudo filosofia, que me traz grande satisfação. Quanto ao falar deixarei para depois.
- Por que você é arredio, não se enturma e aparentemente está sempre casmurro?
- Porque ninguém precisa, de fato, de mim. Sinto-me contente assim. Poucos talvez percebam a alegria que sinto no meu silêncio, na minha isolação. Vivo minha vida sem saber quando ela findará. Não penso na morte, porque aprendi que ela virá sorrateira, portanto é inútil aguardá-la. Quando ela chegar é porque se esgotou o meu tempo. O que tem de ser será.
- O que mais o intriga?
- Tudo o que existe ao meu derredor e o que está longe, mas tomo conhecimento. Impressiono-me em ver que cada coisa é o que é e que formam essa sintonia do universo, ora harmoniosa, ora dissonante. Você realmente parou para admirar a maravilha que é o Sol? Há luz melhor? E os campos verdejantes, as florestas indevassáveis, o oceano com sua imensidão de águas e de vidas, o céu estrelado com, quem sabe, quantos milhões ou bilhões de planetas?
- Puxa, você devia dedicar-se à poesia. Já pensou nisso?
- Dedico-me a ver a poesia da natureza, da estonteante flora, da radiosa aurora, do maravilhoso pôr-do-sol, do cheiro da terra após a breve chuva, do azul do céu, o encantador luar, a escuridão da noite, a trovoada que indica que o raio não me atingiu, o riacho murmurejante, a criança a brincar, a seara plena de grãos, a vida, todas as vidas, principalmente a minha, pois, alegro-me com as coisas, mas não tenho a ambição de possuí-las.
Com retoques expus anotações que tinha comigo, perdidas em meio a muitas folhas amareladas pelo tempo. Só agora percebi com maior profundidade o quanto deixei de aproveitar por não ter conversado mais com o Heitor.
Convenhamos que fosse uma façanha e tanto ter conseguido arrancar-lhe o que apresentei.
Soube, que após a formatura, embora alienado em relação ao dinheiro, obrigando-se a lecionar para sobreviver, foi ensinar Inglês. Não sabia falar disseram-me, mas em apenas um ano de magistério passou a expressar-se fluentemente no idioma de Shakespeare.
- E os alunos?
- Deles não tive notícias, mas com certeza foram premiados por terem como professor o grande Heitor.