Documentos poéticos é o tema da 35º edição do Festivale para esse ano pandêmico de 2021, onde as apresentações, em sua maioria, estão acontecendo de modo online, gravadas. Entretanto, na tarde do dia 25 de outubro de 2021, foi apresentado, no Cine Santana, um espetáculo de modo híbrido: parte do público em casa assistindo remotamente e parte do público presencialmente no teatro – esse recurso permitiu uma experiência distinta às corpas das pessoas espectadoras. O espetáculo apresentado foi o Milongas Sentimentais, que está em sua terceira versão desde que estreou em 1997, sendo esse o primeiro espetáculo da Companhia Milongas Sentimentais de Teatro Popular.
Em cena, o ator popular de rua Carlos Javkin se apresenta com quatro cômicas personagens para falar da Argentina e do Brasil. O narrador/contador de histórias se desdobra de uma forma bastante desenvolta para “vestir suas personagens” e modificar a cenografia cena a cena. O trabalho contou com a orientação cênica do professor Eduardo Coutinho, da Universidade de São Paulo (USP), e tem a participação do músico joseense Diogo Oliveira.
O hermano Carlos Javkin tem uma longuíssima atuação como ator, mímico e palhaço popular, tendo estudado mímica na Argentina com Angel Elizondo. Começou a sua carreira como brincante na década de 1980. Ainda na Argentina, fez parte do movimento de artistas que apresentavam seus espetáculos espontaneamente nas ruas de Buenos Aires, no contexto do retorno da democracia. Portanto, um artista popular da maior grandeza que, ao chegar ao Brasil em 1987, logo tratou de conhecer a nossa cultura e fazer seus espetáculos sempre repletos de referências das culturas populares argentina e brasileira.
Dentro do espetáculo, Javkin nos dá uma verdadeira aula de contação de histórias e mais: de respeito ao público. Em determinado momento do espetáculo, de maneira improvisada, o contador para e solicita à equipe técnica que se ilumine mais a plateia. A própria companhia em seu currículo faz questão de dizer que seus “espetáculos se caracterizam pela forte interação com a público”. É nesse momento que assistimos a inquietação e um certo incômodo do artista popular de não ter o seu bem mais precioso, que é o público, ao alcance de seus olhos. O espetáculo, talvez, devesse ter convocado o público presente a ocupar o palco, de forma mais próxima do contador. Estou quase certo de que isso só não foi possível por conta dos protocolos da pandemia. Mas, valeu e muito por toda lição que esse gesto tão sincero e delicado nos ensinou. Rapsodo ou aedo grego, griot africano, el bululú espanhol, toda ancestralidade dos contadores de causos e histórias estão como que personificadas em Carlos Javkin: um mestre e artesão das palavras faladas.
Javkin em cena está acompanhado por pontuais intervenções musicais executadas ao violão por Diogo Oliveira – músico notadamente brilhante e muito preciso em seu fazer musical. Diogo entende que a música está ali não para ser a protagonista da cena, e sim, para compor junto, para dar sustentação à riqueza de atuação de Carlos Javkin. Voz falada e cantada são de uma beleza estupenda.
Além desses dois impecáveis artistas em cena é preciso nomear outres que compõem espetáculo: os cenários e figurinos são de Conceição Acioli e Carlinhos Deusdeth; o boneco “Burrinha” é do Mestre Saúba dos Bonecos e a boneca de dançar é de Mayr Mendes.
Estivéssemos em um país cujo modelo de ensino não fosse apenas eurocêntrico e que não invisibilizasse a América Latina nos currículos escolares, poderíamos "nadar de braçada" nas peripécias das personagens ali representadas. Nada haveria de estranho se não fosse esse abismo aparente do que conhecemos da Argentina. A escola nos faz estarmos mais perto da Europa do que de outras culturas da América Latina. Que contradição!
É preciso entrarmos no espírito da América Latina e esse espetáculo nos propicia isso.
Evoé!