Como é que funciona uma vitrola?
Quando menino, encafifado com aquele aparelho que tocava música, eu tinha o costume de sentar-me diante da vitrola, na sala de casa, e namorar as capas dos LPs, com fotos, desenhos e cores que despertavam a minha curiosidade.
Eu não tinha mais do que 5 anos, mas preservo algumas lembranças nítidas até hoje, até esses dias de streaming e 'algo-ritmos'.
Havia um disco, em particular, que me cativava e prendia a minha atenção: "Lô Borges", primeiro álbum do artista homônimo, gravado em 1972 e conhecido como o "Disco dos Tênis", por conta da foto da capa. A capa mostrava um par de tênis surrados, largados no meio da rua e aquele abandono parecia me chamar. Aquela capa me atraía como um quadro que eu tentava decifrar.

Digo, sem medo, que aquela altura era o disco que me tocava e não o contrário. Isso porque, curiosamente, tenho pouca memória sonora daquela obra.
Tampouco sabia que o LP havia sido gravado simultaneamente com o "Clube da Esquina", também de 1972, que tinha Lô ao lado de Milton Nascimento e companhia, com uma capa que também me encantava, com dois meninos, um branco e outro negro, sentados à beira de uma estrada de terra. Curiosamente, a gravadora, à época do lançamento, torceu o nariz para as duas capas, que acabaram tornando-se icônicas.
"Vento solar e estrelas do mar/ A terra azul da cor de seu vestido/ Vento solar e estrelas do mar/ Você ainda quer morar comigo?"

O par de tênis representava a estrada. E, pouco depois, eu jamais poderia imaginar que pegaríamos a estrada para ouvir Deus cantar. Que? Bom, no sentido poético. "Se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento", já dizia Elis Regina (1945-1982). Trata-se da mais pura verdade.
Pois bem, e foi nestes bailes da vida que o menino que eu fui calçou os seus próprios tênis, pôs o pé na estrada e ouviu aquela voz divina ao vivo. Foi uma aventura. Com os três filhos a tiracolo, minha mãe pegou uma carona com um amigo e saímos de Taubaté em direção a Cruzeiro, que celebrava seus 90 anos. No caminho, nestas estradas sinuosas, o carro girou, girou, girou feito vitrola, em um rodopio no asfalto, mas escapamos todos bem. Ufa!
Em Cruzeiro, lembro-me do bolo gigante para o aniversário da cidade e tenho gravado na memória a imagem de Milton Nascimento no palco, parecendo um anjo, cantando "Maria, Maria": "Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor/ É a dose mais forte e lenta/ De uma gente que ri quando deve chorar/ E não vive, apenas aguenta".
Também lembro que, no meio do show, um homem invadiu o palco e pegou o boné do Milton, que esbravejou, disse que só voltava a tocar quando lhe devolvessem o chapéu - o que foi feito, para a alegria do público, que aproveitou um show de tirar o chapéu.
Essas lembranças vieram à tona após a morte de Lô Borges, na noite do último domingo, aos 73 anos. "A hora do encontro é também despedida. A plataforma desta estação é a vida", já cantava Milton.
Décadas depois de namorar aquele LP, nestas esquinas da vida, calcei aqueles tênis e me encantei pela poesia mineira. E ela consegue tocar o menino que eu fui e o homem que eu me tornei. "Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração/ Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão".
Como é que funciona uma vitrola? E o que toca o nosso coração?
Muitos anos depois, eu sigo sem saber a resposta das duas perguntas. Mas, neste mundo dos algoritmos e nestes bailes da vida, possamos preservar o coração capaz de tocar e ser tocado, mesmo com o risco de sofrer um risco aqui ou outro ali. "Ponha fé na vida, ponha os pés no chão", cantava Milton.
Então, que tal calçar os seus velhos e surrados tênis? "A pulsação do mundo é o coração da gente/ O coração do mundo é a pulsação da gente".
A estrada é você e o disco já está girando, girando, girando... neste coração vitrola que insiste em tocar a vida. "Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça/ É preciso ter sonho sempre/ Quem traz na pele essa marca possui/ A estranha mania de ter fé na vida".