FABRÍCIO CORREIA

O trono e a coroa de ébano

Por Fabrício Correia | Jornalista
| Tempo de leitura: 4 min
O trono e a coroa de ébano
O trono e a coroa de ébano

“Vidi servum Dei in terra longinqua, et vox ex silentio clamavit: ‘Leva-te e caminha, pois o Reino começa onde ninguém o vê.’”
— Fragmento apócrifo atribuído à tradição oral copta.

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Senhores Cardeais,

Esta não é uma carta. É uma urgência.

Não se trata de um manifesto pela diversidade, tampouco de um apelo sentimental. É o próprio Evangelho, clamando com seus pés empoeirados, que vos convoca. E o que Ele pede é um gesto de fé tão radical quanto o lava-pés, tão subversivo quanto a cruz: a eleição de um papa negro. Um papa africano.

Não negro apenas na epiderme.  Negro na carne histórica, no abandono, no nascimento, na infância, na língua, na dor, no culto, na fome e na ressurreição. Negro como foi o Cristo em sua descendência marginalizada. Negro como foi o corpo de Simão de Cirene. Negro como é a parte da humanidade que mais reza e menos decide. Negro como a terra onde nasceu Agostinho — e onde a Igreja esqueceu de voltar.

Essa escolha não é questão de justiça identitária — é questão teológica. Porque Deus não precisa de representações. Ele quer encarnação. E encarnar, na linguagem da fé, é tornar-se presença. A Igreja já teve pastores santos, teólogos luminosos, reformadores corajosos. Mas nunca teve, em dois milênios, um papa que trouxesse nos olhos a ancestralidade do continente onde a humanidade nasceu.

A África não é exceção. É origem.

Cristo não nasceu branco, nem o Evangelho em Paris. A fé não nasceu entre colunas dóricas, mas em grutas, desertos, povoados sem mapa. E antes que Roma fosse centro, a Etiópia já era santuário. A Líbia já tinha mártires. Alexandria já sonhava com a Trindade.

Por isso, não se trata de devolver à África o que lhe foi tirado. Trata-se de devolver à Igreja o que ela esqueceu: a sua alma.

Francisco, com sua ternura desarmada, desceu da Cúria para as sarjetas. Recolheu gestos. Curou escândalos com misericórdia. Amou mais que governou. Francisco desfigurou a ideia de poder e a devolveu à sua natureza original: serviço. Agora, ao final de seu caminho, é preciso que a Igreja vá mais fundo.

A Santa Igreja precisa de uma transfiguração espiritual. E esta transfiguração virá das periferias reais do mundo. E nenhuma periferia carrega tanto Evangelho na garganta como a África. Porque a África reza em dialetos que a teologia nunca traduziu. Ela louva sem partitura. Celebra com danças que o Ocidente confundiu com profanação. Lá, o pão e o vinho ainda são, para muitos, literalmente o alimento da semana. Lá, a Palavra é transmitida de boca a ouvido, de gesto a gesto, como se cada comunidade fosse um novo Pentecostes.

A fé africana é sobrevivência.

Não virá da África um Papa simbólico. Virá um homem que conhece, desde a infância, o que é adorar em uma igreja sem teto. Que sabe o peso de um rosário feito de sementes. Que já testemunhou padres mortos por dizerem “Não” ao poder local. Que viu mães ensinando a oração do Pai Nosso em línguas que o Vaticano jamais ouviu. Não um papa para agradar à ONU. Um papa para agradar ao Céu.

A Igreja ocidental — com suas catedrais frias e suas burocracias infalíveis — esqueceu que a fé nasce da escuta. E ninguém escutou mais do que os povos que foram silenciados. Um papa africano será, sim, escândalo. Como foi escândalo Jesus chamar pescadores analfabetos. Como foi escândalo tocar leprosos. Como foi escândalo colocar uma samaritana como primeira anunciadora da Ressurreição.

A Igreja que resistir a esse gesto, senhores, resistirá ao próprio Espírito. Porque o Espírito sopra onde quer. E neste tempo, Ele sopra da África. Sopra das palhoças e das favelas, das orações cantadas em igbo, ewe, suaíli, zulu, lingala, luganda. Sopra de corpos que dançam e jejuam com a mesma intensidade, de crianças com o estômago vazio mas com o coração cheio de fé.

A África não pede um papa. A África continua dando mártires. A Igreja não fará um favor à África elegendo um papa negro. Fará justiça à própria essência do Evangelho. Porque quem vive onde tudo falta entende melhor o que significa dizer: “Isto é o meu corpo”.

Senhores Cardeais,

Não peço coragem. Peço fidelidade.

Que vossos votos não sejam calculados como eleições humanas. Que não escolham o homem mais apto as manchetes, mas o mais digno do Evangelho. Que o trono de Pedro, por uma vez, seja ocupado por quem nunca foi chamado ao centro — mas sempre sustentou a Igreja em oração. O Cristo não está nas sondagens. Está nos olhos de quem jamais foi olhado. Um papa africano não será avanço. Será volta. Volta ao Evangelho. Volta ao chão. Volta à escuta. Volta ao mistério. A Igreja precisa parar de se defender. E começar a se ajoelhar.

A eleição de um papa negro, africano, filho da Palavra viva, não resolverá todas as coisas. Mas será o começo daquilo que só a fé compreende: a força do gesto que reabre o céu.

E o céu, senhores, já se abriu.

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