OPINIÃO

O machismo estrutural até na defesa das mulheres

Por Fabrício Correia | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 5 min
Jornalista
Divulgação
Janja abraça Lula em agenda de governo
Janja abraça Lula em agenda de governo

Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, essa semana  que “a mulher do presidente Lula não nasceu para ser dona de casa”, referindo-se à atuação de Janja em eventos diplomáticos internacionais, pretendia fazer uma defesa enfática de sua companheira frente aos ataques misóginos da oposição. No entanto, sua fala, ainda que revestida de um discurso progressista, carrega o ranço estrutural de uma sociedade que historicamente marginalizou o papel da dona de casa, como se a política só se realizasse nos palácios e nunca nas cozinhas.

A frase, dita em tom de empoderamento, acaba revelando uma camada mais profunda e incômoda: a hierarquização dos papéis femininos. Se a mulher do presidente “não nasceu para ser dona de casa”, qual a leitura implícita sobre as que nasceram? Qual o lugar dessa Marisa Letícia e das milhões de brasileiras que, invisivelmente, sustentaram este país lavando roupas, cozinhando, criando filhos, organizando os bastidores da existência, enquanto seus maridos, chefes, filhos e patrões faziam a “história oficial”?

Essa fala não é apenas um deslize retórico. Ela é reflexo de um sistema simbólico que se vale de hierarquias para estabelecer valor: mulher pública é progressista; mulher doméstica é ultrapassada. Mas a verdadeira libertação da mulher está na possibilidade de escolha — inclusive a escolha de ser dona de casa, sem que isso implique invisibilidade, inferioridade ou falta de reconhecimento político.

O Brasil é um país que ainda carrega as marcas coloniais de uma divisão sexual do trabalho. A figura do homem que ocupa o espaço público e da mulher que ocupa o espaço privado foi naturalizada por séculos. A própria construção da cidadania brasileira, desde o Império, excluía as mulheres dos direitos políticos e relegava a elas o “governo da casa”. Ser dona de casa sempre foi imposição. E mesmo hoje, para milhões, continua sendo a única rota possível dentro das limitações impostas por classe, raça e território.

A frase de Lula também se torna paradoxal à luz de sua própria biografia. Sua primeira esposa, Lourdes, morreu durante o parto — enquanto ele era um jovem operário em formação. Marisa Letícia, sua companheira durante mais de quatro décadas, esteve ao seu lado nos momentos mais dramáticos e decisivos da construção do sindicalismo brasileiro e da fundação do Partido dos Trabalhadores. E o fez, quase sempre, ocupando o lugar social de dona de casa. Uma mulher que, mesmo organizando reuniões sindicais, criando os filhos praticamente sozinha e bordando a estrela do PT com as próprias mãos, não foi reconhecida como articuladora política senão muito tardiamente.

A verdade sociológica que nos atravessa é simples e brutal: o machismo não está apenas nos gestos violentos, mas nas pequenas hierarquias discursivas. Está na ideia de que a mulher que cozinha não pensa. Que a mulher que cuida dos filhos não tem projeto. Que a mulher que fala pouco não tem voz. Está, inclusive, na frase dita com a intenção de defender uma mulher e que, sem perceber, desqualifica tantas outras.

É preciso dizer com todas as letras: dona de casa é trabalho. Dona de casa é política. Dona de casa é resistência. E o Estado brasileiro nunca reconheceu plenamente essa função essencial à sociedade. Não há previdência justa para elas, não há descanso, não há salário, não há prestígio. O Brasil se ergueu sobre os ombros curvados das donas de casa — e, ainda assim, segue negando a elas o direito ao reconhecimento público.

A fala de Lula também escancara o quanto nossa cultura política ainda é centrada no masculino. Mesmo quando homens tentam enaltecer as mulheres, o fazem a partir de seus próprios referenciais de poder. A frase não é sobre Janja. É sobre ele. “A mulher do presidente Lula…” — ainda não conseguimos conceber a mulher em sua potência individual, sem que esteja ligada a um homem. Janja não é apenas “a mulher de Lula”. Ela é uma profissional, uma militante, uma voz política autônoma. Marisa também foi. Milhões de outras também são.

Reconhecer isso é urgente. O feminismo contemporâneo brasileiro precisa ir além do combate às agressões explícitas: deve atuar sobre essas estruturas simbólicas mais sutis, que perpetuam desigualdades mesmo sob a aparência de avanço. O discurso progressista não pode ser um verniz sobre estruturas arcaicas. Precisa ser desconstrução radical da lógica patriarcal — inclusive nas palavras dos que se dizem aliados.

Por isso, o episódio não deve ser apenas lido como uma gafe, mas como oportunidade de reflexão nacional. É hora de desnaturalizar a hierarquia entre os espaços. A casa é tão política quanto o palanque. O cuidado é tão revolucionário quanto a greve. A cozinha é tão central quanto a tribuna. E enquanto um presidente puder dizer que sua mulher “não nasceu para ser dona de casa” como elogio, estaremos ainda muito distantes de uma sociedade verdadeiramente igualitária.

Em vez de hierarquizar os papéis, o Brasil precisa garantir que todas as mulheres, sejam elas diplomatas, sociólogas, agricultoras, enfermeiras, garis ou donas de casa, possam existir com dignidade, reconhecimento e liberdade. A frase de Lula, que deveria ser um manifesto de empoderamento, acabou revelando que ainda precisamos, urgentemente, reeducar o país — e seus líderes — para compreender o que, de fato, significa ser feminista.

A mulher brasileira não nasceu para ser invisível. Mas nasceu, muitas vezes, em um país que insiste em apagá-la. E é tempo de virar essa página com coragem e memória. Porque enquanto o lar for visto como o oposto da política, continuaremos sendo uma democracia pela metade.

Fabrício Correia é escritor, jornalista, historiador e professor universitário. 

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