GOVERNO BRASILEIRO

O retrato de Sarney: 40 anos de um Brasil que apenas se reproduz

Por Fabrício Correia | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 3 min
Reprodução / Marcos Oliveira / Agência Senado
 José Sarney
José Sarney

Em 15 de março de 1985, José Sarney subiu a rampa do Planalto para assumir a presidência da República. Quarenta anos depois, sua presença continua a assombrar a política nacional.

Como um personagem extraído da obra de Oscar Wilde, ele parece ter feito um pacto silencioso com a história: enquanto os rostos e partidos ao seu redor envelhecem e se desgastam, sua influência atravessa décadas sem se dissipar.

Mas ao contrário de Dorian Gray, cujo retrato apodrecia em segredo, a deterioração do Brasil sob a lógica política que Sarney representa nunca foi oculta. Pelo contrário, suas marcas estão estampadas na desigualdade persistente, na fragilidade das instituições e no eterno retorno ao mesmo modelo que transforma a política em herança familiar e o Estado em feudo.

A posse de Sarney deveria simbolizar o fim do regime militar e o início de um novo ciclo democrático. No entanto, foi a síntese de uma transição negociada que preservou estruturas, manteve privilégios e garantiu que o velho continuasse a governar sob uma nova fachada.

Seu governo enfrentou crises econômicas avassaladoras, oscilando entre planos mirabolantes e estagnação política. Nenhuma reforma de base alterou o destino do país. Nada foi de fato resolvido. O Brasil, nos anos Sarney, andou em círculos, refém de um poder que se perpetuava através de alianças convenientes.

A longevidade de sua influência não foi construída sobre ideias transformadoras, mas sobre a arte da sobrevivência. Sarney não inovou, se adaptou. Não quebrou ciclos, apenas os refinou. Não ergueu pontes para o futuro, mas consolidou trincheiras para a permanência. Fez da política um ofício hereditário, mantendo sua família e aliados no controle do Maranhão e, por extensão, em posições estratégicas do governo federal.

Quatro décadas após sua posse, ainda se sente seu legado nas engrenagens do fisiologismo, na cultura do “toma lá, dá cá”, na perpetuação do poder como um direito quase monárquico.

O Brasil prometeu mudar muitas vezes desde 1985. Sarney atravessou todas essas promessas ileso. Enquanto presidentes vinham e iam, ele permanecia. Enquanto partidos se revezavam no comando, sua voz seguia decisiva nos bastidores.

Governos de direita e esquerda passaram pelo Planalto, mas a lógica que ele ajudou a consolidar sobreviveu. Se a política nacional fosse um grande romance, Sarney seria seu narrador onipresente: nunca protagonista absoluto, mas sempre indispensável.

Mas se Dorian Gray enganou o tempo ao esconder seu verdadeiro rosto, José Sarney não precisa de uma tela envelhecendo em seu lugar. O retrato do Brasil que ele ajudou a moldar está exposto para todos verem.

Um país que deveria ter rompido com o passado, mas que não consegue se desprender de seus caciques. Uma democracia que se pretende moderna, mas que ainda opera sob as regras da velha oligarquia. Uma nação que quer avançar, mas que, a cada tentativa, se descobre presa ao mesmo labirinto.

O mito da santificação dos anciãos costuma transformar figuras políticas em intocáveis conforme o tempo passa. Mas longevidade não é sinônimo de virtude. O Brasil não deve reverenciar Sarney pelo tempo que resistiu, mas questionar o que sua resistência custou ao país. Se há algo imortal em sua trajetória, não é um legado de transformação, mas a perpetuação de um sistema que se recusa a morrer. Quarenta anos depois de sua posse, não há um novo capítulo para a história do Brasil enquanto os retratos do passado ainda governam o presente.

Fabrício Correia é escritor e jornalista. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a UBE (União Brasileira de Escritores)

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