- Um momento, é Orloff?
- Não, mas quem é você?
- Eu sou você amanhã. Com licença, garçom troca por Orloff.
- Mas não são todas iguais?
- Não, Orloff é destilada três vezes, amanhã você não se arrepende.
- Mas, afinal, quem é você?
- Eu sou você amanhã.
"Pense em você amanhã, exija Orloff hoje", diz o slogan deste famoso comercial de vodka (veja aqui), datado de 1987, que mostrava o encontro entre duas versões de um mesmo homem, no balcão de um bar.
Trinta e sete anos depois, a peça publicitária se mantém atual e, neste caso, não estou fazendo propaganda de bebida alcoólica, muito pelo contrário. É hora de falar da vitória do republicano Donald Trump, que derrotou fragorosamente a democrata Kamala Harris e foi eleito o 47º presidente dos Estados Unidos, na madrugada desta quarta-feira (6). É a democracia de ressaca?
Indiferente ao clima de porre dos adversários, para os trumpistas é hora de brindar a vitória, já intitulada a 'maior volta por cima da história da maior democracia do planeta'. E o que isso tem a ver com o Brasil? Tudo. Há um velho ditado que, acertadamente, diz: quando os EUA espirram, o mundo fica resfriado.
Desde 2016 -- quando Trump ganhou da democrata Hillary Clinton na corrida à Casa Branca, em uma disputa paradigmática, que escancarou a era da pós-verdade e do dopping eleitoral provocado pelas fake news -- as eleições norte-americanas têm representando um efeito Orloff em relação ao jogo democrático brasileiro. Traduzindo: o que acontece lá, dois anos depois, tem se repetido por aqui. Quer ver?
Após a eleição de Trump em 2016 e repetindo o modus operandi da campanha do republicano, com a aposta nas redes sociais, em um discurso nacionalista apoiado em notícias falsas e na volta a um idílico e questionável passado glorioso, Jair Bolsonaro derrotou o PT e venceu a corrida ao Palácio do Planalto, em 2018. Trump e Bolsonaro mostraram alinhamento irrestrito, seja nos temas de costumes, no negacionismo climático, na geopolítica, entre outras pautas.
Dois anos mais tarde, em 2020, após seu desastroso desempenho no combate à pandemia de Covid-19, quando deu voz a movimentos negacionistas, Trump foi derrotado na tentativa de reeleição, sendo vencido pelo democrata Joe Biden. Porém, o republicano colocou a eleição em xeque. Ao questionar o resultado das urnas, ele tensionou a democracia norte-americana, em um espetáculo dantesco, inflamando sua base reacionária via redes sociais e culminando com a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, em Washington D.C. Um triste capítulo na história dos EUA. Cinco pessoas morreram durante o motim dos 'patriotas'.
Em 2022, no Brasil, após seu desempenho desastroso na pandemia, Bolsonaro foi derrotado por Lula (PT) e tornou-se o primeiro presidente a não conseguir a reeleição desde o início do período de redemocratização no país. Bolsonaro acusou as eleições de terem sido fraudadas e o Brasil esteve à beira de um golpe de Estado -- o que é alvo de investigação da Polícia Federal.
Em 8 de janeiro de 2023, após meses de fanáticos bolsonaristas acampados na porta de quartéis, 'patriotas' invadiram a sede dos três Poderes da República, em Brasília, em episódio que entrou para a história como 'Capitólio brasileiro'.
Após livrar-se de um pedido de impeachment, Trump obteve uma vitória importante no dia 4 de abril de 2024, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o ex-presidente poderia disputar as eleições presidenciais, derrubando uma sentença do estado do Colorado, segundo a qual o democrata não poderia disputar o pleito por ter violado a Constituição norte-americana, por sua participação na 'insurreição' no Capitólio.
Trump é o primeiro presidente eleito para a Casa Branca tendo uma condenação -- ele aguarda sentença em caso de suborno em Nova York e ainda trabalha para evitar processos em outros casos estaduais e federais.
O democrata deverá comparecer à Justiça em 26 de novembro, para receber uma sentença por sua condenação no início do ano por 34 acusações de falsificação de registros comerciais para encobrir um pagamento de dinheiro durante a campanha eleitoral de 2016, para silenciar a estrela de filmes pornográficos Stormy Daniels, com quem teria tido um caso. Trump nega.
Fato é, aproveitando-se de um Biden envelhecido e de um Partido Republicano claudicante, que escondeu Kamala ao longo dos últimos quatro anos e tentou, às pressas, transformá-la em uma candidata competitiva, Trump venceu a briga em uma campanha dura, divisória e bélica, marcada pelo atentado sofrido pelo democrata, em 13 de julho.
Nesta onda de Trumps, Mileis, Musks, o padrão Orloff pode se repetir?
Em terras brasileiras, após as eleições municipais, as urnas deram um recado claro ao governo Lula e mostraram o avanço de partidos de direita e centro, com destaque para o PL de Bolsonaro e o PSD do fisiológico Gilberto Kassab. Há até quem coloque em dúvida se Lula, envelhecido, buscará ou não a reeleição. Notícias recentes mostram o temor de lideranças petistas, assombradas com a possibilidade de que Lula não dispute a eleição em 2026.
A avaliação do governo permanece estável, com 36% de ótimo ou bom, com 33% de ruim ou péssimo, além de 29% de regular; 2% não responderam (Datafolha de outubro de 2024). Já não basta ter resultados, é preciso comunicá-los de forma eficiente. A esquerda, como gritam as urnas, tem perdido a capacidade de se conectar às bases da sociedade.
Lula buscará a reeleição? Caso não dispute, há lideranças prontas a substituí-lo?
Valdemar Costa Neto, presidente do PL, afirma que o partido trabalha para derrubar a inelegibilidade de Bolsonaro e que o ex-presidente será o candidato ao Palácio do Planalto em 2026. Poderá a eleição de Trump pressionar o STF?
As urnas, em outubro, deixaram claro: o bolsonarismo é maior do que Bolsonaro, enquanto Lula é hoje maior do que o PT.
- Mas, afinal, quem é você?
- Eu sou você amanhã?
Hoje é dia de ressaca para uns e brindes para outros em Brasília.
P.S. Há um velho ditado que, acertadamente, diz: quando os EUA espirram, o mundo fica resfriado. Hoje, o mundo democrático responde 'Saúde' e torce para que não seja Covid-19.