ELEIÇÕES

Democracia em preto e branco, Neruda e minha primeira eleição

Por Guilhermo Codazzi | Taubaté
| Tempo de leitura: 3 min
Editor-chefe de OVALE
Acervo Pessoal
O repórter que fui aos 8 anos, em desenho feito pelo meu pai naquelas velhas cartas
O repórter que fui aos 8 anos, em desenho feito pelo meu pai naquelas velhas cartas

Nasci em 30 de janeiro.
Nasci no dia da saudade.
Porém, certamente, a democracia não tem saudade do 30 de janeiro em que eu nasci.
Porque quando nasci, em 30 de janeiro de 1981, a ditadura vivia. "É verdade que um condor negro sobrevoa minha pátria à noite?", questionou certa vez o poeta Pablo Neruda (1904-1973), também ex-senador chileno, em seu Livro das Perguntas.

Quando nasci, a democracia morria asfixiada nos porões da República. Sentada na cadeira do dragão, a verdade confessava mentiras indizíveis.
Quando nasci, a democracia agonizava calada, torturada, violentada e profanada.
Quando nasci, a ditadura respirava, em um bafo quente, mofado e tétrico. Mas, a verdade, é que eu não sabia de nada disso. Assim como não sabia nem sequer o que era democracia. Talvez soubesse apenas que terra nenhuma é tão livre quanto o coração do menino.

Naquele tempo, minhas lutas eram outras. Afinal, era preciso salvar o mundo ao lado de Spectreman ou de algum outro herói antes de ir para a escola, a Vidinha em Grupo. Minha pauta, à época, era brincar com meus irmãos, primos e amigos na praça do Bom Conselho, na Taubaté do meu tempo.
A primeira vez em que eu vi a democracia, ao vivo e a cores, foi na televisão, em preto e branco. Era o fim da ditadura e o início da redemocratização do Brasil, em 1985. Lembro-me vagamente da cena, a reportagem na TV noticiando a morte de um velhinho chamado Tancredo Neves. Não entendi nada, mas notei que aquilo deixou o país muito entristecido.

Não era só a televisão, parecíamos viver dias em preto e branco.
Falando em PB, após o divórcio, naquele mesmo tempo, meu pai tinha o costume de nos enviar cartas, acompanhadas de fotos em preto e branco. Nelas, ele contava as novidades, perguntava como andavam as coisas, além de contar sobre os bastidores de suas reportagens como jornalista. Nas epístolas, invariavelmente, fazia desenhos da família 'Patropi' -- meus irmãos Julio, Marina e eu, além dele e da minha mãe.
Quem poderia imaginar que, muitos anos depois, teria meu destino ligado a cartas e ao jornalismo?

Bom, falando nele, nos reencontramos com a democracia.
Ainda sem nem sequer imaginar que um dia seria repórter, fiz a minha primeira reportagem aos 8 anos, em uma cobertura infantil das eleições de 1989.
Eu explico. Alguma professora passou uma tarefa sobre a primeira eleição direta para presidente após o fim da ditadura. Com a missão de fazer uma redação a respeito do tema, peguei a minha bicicleta e percorri comitês de candidatos, curioso com aquela movimentação frenética. Ia de um comitê para o outro, pedalando daqui pra lá, de lá pra cá. Se eu, chegando em casa, fiz uma grande reportagem?

Confesso que não me recordo, lembro-me apenas que voltei para casa com chaveirinhos, adesivos, camisetas, bonés e panfletos de candidatos.
De lá pra cá, ao tornar-me jornalista, perdi a conta de quantas eleições já cobri. 
De lá pra cá, a democracia menina do Brasil também passou por poucas e boas, sobrevivendo até mesmo a ataques que lembraram os dias de chumbo.
Diariamente, nos encontramos. Olhos nos olhos. A democracia, o jornalismo e eu.
E aí, recorro a um outro verso de Neruda:

"Onde está o menino que fui:
anda comigo ou evaporou-se?

Sabe que nunca fui com ele
nem ele comigo tampouco?

Por que estivemos tanto tempo
crescendo para essa ruptura?

Quando minha infância se foi
por que nós dois não fomos juntos?

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