REFLEXÃO

Como 'Divertidamente 2' ressoa no nosso cotidiano?

Por Francisco Estefogo | Taubaté
| Tempo de leitura: 6 min
Membro da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Unitau
Reprodução
'Divertidamente' é um sucesso de bilheteria
'Divertidamente' é um sucesso de bilheteria

Dentre inúmeros fardos do século XXI, a ansiedade se destaca como uma das emoções mais proeminentes e, em muitos casos, irrefreáveis, que assola muitos de nós na sociedade contemporânea. Devido aos avanços tecnológicos, à constante conectividade e ao fluxo interminável de informações que, muitas vezes, sobrecarrega nossa capacidade de processar e lidar com o mundo ao nosso redor, podemos estar invariavelmente ansiosos. No mais, a pressão pelo triunfo profissional, as exigências sociais e, a rigor, a necessidade de estar sempre atualizado geram um ambiente onde a competição é constante e a comparação com os outros se torna inevitável. Ademais, as redes sociais, embora nos conectem, também contribuem para a criação de padrões inalcançáveis de vida e êxito social. Como consequência, exacerbam sentimentos de inadequação, não-pertencimento e, por conseguinte, de ansiedade. Além disso, a instabilidade econômica, as mudanças climáticas e as crises políticas globais, sobretudo, os conflitos bélicos, alimentam um sentimento contínuo de incerteza sobre o futuro. Essa ambiguidade corrói a sensação de segurança e estabilidade, o que nos deixa, à primeira vista, à mercê de preocupações incessantes e, consequentemente, extremamente ansiosos.

A ansiedade, portanto, se manifesta de diversas formas, desde preocupações sutis e persistentes até ataques de pânico debilitantes e, em casos extremos, complicações patológicas e drásticas. Não raro, afeta a saúde mental e física, interferindo nas atividades cotidianas, nos relacionamentos e nos prazeres na vida. Sobreleva ressaltar, contudo, que, em doses moderadas, a ansiedade pode ser um poderoso elemento motivador, pois consegue impulsionar-nos a planejar, prevenir e encarar obstáculos. No entanto, quando desproporcional, a ansiedade se transforma em um estorvo esmagador, corroendo nossa paz interior e nosso bem-estar, afora os flagelos sociais. Enfrentar esse mal da modernidade requer uma abordagem multifacetada que inclui, dentre outras frentes, maior conscientização sobre saúde mental, acesso a tratamentos adequados com profissionais da área, práticas de autocuidado e uma mudança cultural que valorize mais a paz de espírito do que a ininterrupta produtividade. Talvez, assim, poderemos começar a aliviar o peso da ansiedade que marca tão profundamente a experiência humana no século XXI.

Para além do nosso foro íntimo, repleto de idiossincrasias oriundas da turbulenta contemporaneidade, a discussão sobre a ansiedade, de tempos em tempos, atravessa o mundo das artes e, assim, ressoa no nosso cotidiano. O filme Divertida Mente 2 e o musical Querido Evan Hansen, por exemplo, exploram, de forma peculiar, o impacto da ansiedade nas nossas vidas, ao oferecer um espelho para a realidade que muitos de nós afrontamos diariamente. Mais particularmente, Divertida Mente 2, animação de estrondoso sucesso em cartaz do estúdio da Pixar e dirigido por Kelsey Mann, ansioso assumido, continua a desvendar o funcionamento interno da mente da jovem Riley, agora adolescente, trazendo à baila, de forma lúdica, a complexidade das emoções atinentes ao tédio, à vergonha, à inveja e, com relevo, à ansiedade. No novo filme, continuação do Divertida Mente, lançado em 2015, época que a personagem principal tinha 11 anos e convivia com a alegria, o medo, a raiva, o nojinho e a tristeza, a ansiedade é representada como uma resposta natural e necessária em certas situações, mas também como um potencial desencadeador de paralisação, letargia e medo excessivo. De forma geral, a mensagem do longa é reconhecer que não estaremos sempre em nosso melhor estado ou constantemente felizes, e que, destarte, é imperativo tratar de nossas emoções no momento apropriado. Em vez de sucumbir às pressões sociais, em tese, a emocionante película nos ensina que deveríamos manter nossos princípios e valores, singularmente, com base no conhecimento de si, com equilíbrio e sabedoria.

Em relação ao Querido Evan Hansen, musical da Broadway atualmente em cartaz no Rio de Janeiro e com previsão de estreia na cidade de São Paulo em agosto, a montagem teatral traz uma abordagem mais direta e – bem – dolorosa da ansiedade, ao focar na vida de um jovem que trava uma batalha com uma profunda sensação de isolamento e ansiedade social. A dramaturgia do espetáculo ressalta como a falta de conexão humana e o sentimento de inadequação podem amplificar a ansiedade. Essa sensação retratada no estupendo trabalho cênico, em especial, na era dos indefectíveis e onipresentes celulares, ecoa contundentemente no nosso dia a dia. Esses expedientes são refletidos na jornada do protagonista, que luta com o peso das expectativas sociais e a liberdade de definir sua própria identidade. A música e a narrativa, que atravessam a impecável apresentação, capturam a essência da ansiedade existencial, na qual a busca por significado e conexão com o mundo se torna um duelo diário, flertando com o fracasso e, vez por outra, a tragédia. Assim como Divertida Mente 2, Querido Evan Hansen, vencedor de 6 Tony, o ‘Oscar do teatro’, embora distintas em abordagem e público, sublinha a importância de entender e gerenciar a ubíqua ansiedade, possivelmente, a perene agrura do século XXI.

Do ponto de vista filosófico, o estoicismo, em particular, nas obras de Sêneca (4-65 a.C.) e Epiteto (55-135 d.C.), propõe perspectivas reflexivas sobre a ansiedade. Os estoicos defendiam que as emoções destrutivas resultam de equívocos derivados de julgamentos e que podemos alcançar a tranquilidade emocional se controlarmos os nossos pensamentos e atitudes. Nas palavras de Epiteto: "Não são as coisas que nos perturbam, mas a visão que temos delas". Já a filosofia existencialista, especialmente, a partir das discussões de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Søren Kierkegaard (1813-1855), oportuniza uma análise mais profunda e complexa no que se refere à ansiedade. Sartre, em O Ser e o Nada, descreve esse tormento hodierno como uma consequência da liberdade humana, ou melhor dizendo, um sentimento que surge quando nos confrontamos com a imensidão de nossas possibilidades e responsabilidades. Kierkegaard, por outro lado, considerava a ansiedade como "a vertigem da liberdade", ou seja, uma sensação inevitável que aflora quando percebemos nossa própria liberdade de escolha e, por outro lado, a ausência de certezas absolutas. Outrossim, Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, no icônico livro Assim Falou Zaratustra, argumentava que o sofrimento e a luta são essenciais para o desenvolvimento pessoal e a criação de significados. O pensador do inconfundível bigode concebia a superação das dificuldades, incluindo a ansiedade, como um caminho para a autossuperação e o fortalecimento do espírito. Portanto, ao nos depararmos com representações artísticas da ansiedade, tais como em Divertida Mente 2 e Querido Evan Hansen, somos convidados não apenas a reconhecer essa emoção em nossas vidas, mas também a refletir sobre como podemos afrontá-la, gerenciá-la e, de algum modo, suplantá-la.

As emoções humanas são um intricado mosaico de experiências subjetivas, reações fisiológicas e processos cognitivos ímpares que, juntos, formam as bases de nossa existência consciente. Entre essas emoções, no mundo moderno, a ansiedade se sobressai por sua complexidade, onipresença e, em última instância, funestos desdobramentos. Diferente do medo, que é uma resposta direta a uma ameaça imediata, a ansiedade é, em linhas gerais, a antecipação angustiante de um futuro incerto, muitas vezes nebuloso, sombrio e indefinido. Nesse sentido, os ensinamentos de Lao Tzu (601-531 a.C.), fundador do taoismo filosófico, podem, porventura, ser ponderações fecundas para desafiar essa mazela da hodiernidade. Declama o pensador chinês: “Se você está deprimido, /Você está vivendo no passado;/Se você está ansioso, /Você está vivendo no futuro;/Se você está em paz/Você está vivendo no momento presente”.

* Membro da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Unitau

 

 

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