REFLEXÃO

Artigo: Educação contemporânea: supressão filosófica?

Por Francisco Estefogo | Taubaté
| Tempo de leitura: 7 min

“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, afirmou o antropólogo mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997), em uma conferência, em 1982. Na mesma toada, Pitágoras (570-495 a.C.), filósofo e matemático grego, advertiu: “eduquem as crianças e não será necessário punir os adultos”. Embora separadas por um hiato de quase 2.500 anos, o inestimável apreço dado à educação pelas duas concepções dos grandes pensadores, de forma geral, parece não ter o mesmo mérito na contemporaneidade. Pelo menos, em terras tupiniquins. Há tempos, um dos debates mais recorrentes e mercuriais no universo escolar gira em torno dos rumos da educação para as demandas do século XXI. Parece que há uma supressão dos exemplos de sucessos educacionais mundo afora, além das visões filosóficas acerca da potencialidade dos patrimônios educativos concernentes às transformações do mundo moderno e ao bem-estar coletivo.

Mais particularmente em relação ao Brasil, em 2023, foram incontáveis os desafios atinentes à criminalidade, com altas taxas de violência em algumas regiões do país. Houve preocupações com o aumento da criminalidade organizada, especialmente ligada ao tráfico de drogas, tal e qual com crimes violentos, como homicídios, feminicídios e assaltos. Segundo os dados publicados pelo UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes), o Brasil, classificado como o nono país mais rico do mundo, lamentavelmente, figura entre os 20 mais violentos do planeta, ocupando a 18ª posição. A considerar o alerta supracitado por Pitágoras e Darcy Ribeiro, no que se refere à convergência entre educação, crimes e prisão, os últimos índices avaliativos alusivos aos sistemas educacionais, de alguma forma, ratificam tal correspondência.  De acordo com o relatório do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), divulgado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em dezembro de 2023, o Brasil figura entre os 17 países com pior desempenho em matemática, de um total de 81 nações analisadas.

No que tange à leitura, a vexatória situação escolar não é nada diferente. Conforme o Estudo Internacional de Leitura (PIRLS), conduzido pela Associação Internacional para a Avaliação de Conquistas Educacionais (IEA), a proficiência em leitura das crianças brasileiras está entre as mais baixas do mundo. A pesquisa envolveu análises de jovens do 4º ano do ensino fundamental em 57 países. Com o ponto de referência de 500 pontos como a média combinada de todos os países, os estudantes brasileiros obtiveram uma média de 419 pontos, colocando o país na 52ª posição. O Brasil ficou à frente de algumas nações, como Irã, Egito e Jordânia, mas atrás de Albânia (513), Cazaquistão (504), Azerbaijão (440), Uzbequistão (437) e Kosovo (421). No topo da lista figuram Singapura (587), Irlanda (577) e Hong Kong (573), pátrias com tradição de aportarem quantias colossais de recursos financeiros na educação.

A propósito, um relatório recente da OCDE, composto, principalmente, por dados dos países mais desenvolvidos, indica que o investimento por discente no Brasil é o terceiro mais baixo entre 42 nações, o que representa pouco mais de um terço da média dos Estados ricos. O Brasil destina cerca de quase US$ 3 mil por estudante, ao considerar todos os investimentos públicos na educação, desde o ensino fundamental até o médio. Enquanto a média dos países da OCDE ultrapassa os US$ 10 mil, o Brasil fica na casa dos míseros US$ 3 mil, situação que o posiciona apenas acima do México e da África do Sul. Nações como Argentina, Colômbia, Chile e Costa Rica investem quantias superiores às nossas, e, claro, milhas de distância das líderes Suíça e Noruega, ou seja, na ordem de US$ 18 mil e US$ 16 mil por discente, respectivamente.

Afora esse pífio aporte financeiro, é mais provável que o Brasil siga com a pecha de ser um país que tem muitas dificuldades em administrar já os parcos recursos destinados à educação, pois a conjuntura nessa seara é extremamente complexa e multifacetada, além das várias razões que desafiam o sistema educacional brasileiro. Alguns dos principais fatores incluem a desigualdade socioeconômica, a infraestrutura precária, a claudicante qualidade do ensino e a formação docente, o currículo e as metodologias de ensino descolados da “vida-que-se-vive”, como diria Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), ambos filósofos alemães, bem com os estruturais e burocráticos meandros de operacionalização das escolas da rede pública.

No que se refere ao esteio filosófico atinente à potência da educação, Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo grego, acreditava que a atividade educacional era essencial para o pleno desenvolvimento humano, envolvendo não apenas a instrução intelectual, mas também a formação do caráter moral e ético. O polímata da Grécia enfatizava a importância da educação que cultivasse virtudes como a coragem, a temperança e a justiça. No entanto, situações contemporâneas, tais como “torcedor morre em Belo Horizonte após briga entre organizadas de Atlético-MG e Cruzeiro” e “briga entre vizinhas em São Paulo gera indenização por danos morais”, além de “mulher leva idoso morto ao banco em Campinas para tentar saque”, parecem ser um desvio alarmante da vigente prática educacional comparada à compreensão filosófica relacionada às possibilidades transformadoras da educação em favor, principalmente, do bem coletivo e do cuidado com o outro.

Ademais, Platão (428-348 a.C.), filósofo grego, acreditava que a educação deveria moldar as almas para alcançar o bem comum da sociedade. Não obstante, alguns episódios veiculados recentemente na imprensa como, por exemplo, ‘servidor da Justiça do Rio Grande do Norte é preso suspeito de matar psicóloga em clínica” e ainda “psicóloga, que se diz desembargadora, ofende funcionários do restaurante do Museu do Amanhã no Rio de Janeiro”, igualmente sinalizam total desarmonia no que diz respeito à corrente operação escolar equiparada com as oportunidades da ação educativa revolucionária, singularmente, em prol da qualidade de vida coletiva.

Afora esse absoluto distanciamento da “vida-que-se-vive” com as perspectivas filosóficas no tocante aos ritos educacionais, Locke (1632-1704), filósofo inglês, defendia a ideia de que a educação deveria desenvolver a mente e o corpo para o bem-estar individual e social. Contudo, ao se deparar com os incidentes de que um “cirurgião plástico foi condenado a 36 anos de prisão por crimes sexuais contra mulheres em Porto Alegre” e uma “falsa médica em Maceió cobrava R$ 450 e se dizia especialista em câncer”, apreende-se que, de forma geral, há algum descompasso entre o que a escola entrega para a sociedade e algumas proposições da filosofia relativas ao processo educacional como catalisador de mudanças com vistas ao bem da sociedade.

Uma outra contribuição filosófica de grande peso sobre o valor imensurável da educação foi de Rousseau (1712-1778), filósofo genebrino. O teórico político suíço do século XVIII destacava a importância da educação para o desenvolvimento da liberdade individual. Entretanto, as tristes ocorrências noticiadas nos últimos meses, a saber, “casal gay denúncia loja em São Paulo que negou a fazer os convites de casamento”,  “mulher usa coleira de cachorro para agredir entregadores negros no Rio” e “adolescente morre depois de ser agredido por colegas em escola na Praia Grande”, evidenciam que nossa liberdade de ser, pensar, desejar e viver como queremos, em particular, se formos negros, idosos, mulheres, PcDs, pobres, indígenas, ou da comunidade LGBTQIAPN+, dentre outros grupos sociais vilipendiados, está à espreita. A qualquer momento, poderá ser cerceada e confrontada por manifestações de intolerância, preconceito, violência verbal e física e, não raro, morte. 

Indubitavelmente, não seria justo debitar todos esses intencionais desafortunados eventos desumanos somente na conta da educação. É um fardo muito pesado, labiríntico e amplamente hermético. Há outros inúmeros aspectos sociais, morais e éticos causadores dessas circunstâncias de intolerância, preconceito, desrespeito, egoísmo, covardia, desequilíbrio e injustiça. Todavia, a entender a liturgia escolar como celeiro da nossa socialização e desenvolvimento pessoal, de modo a nos preparar para a cidadania, bem como para promover o “bem comum na sociedade”, como diria Platão, ou ainda “o bem-estar individual e social”, como apontou Locke, urge que se fomente, como já muito aventado, mas pouco empiricamente feito, uma cultura escolar de respeito à diversidade, aos direitos individuais e a benquerença da coletividade.

Em virtude de as perplexidades educacionais brasileiras serem infinitamente enigmáticas e, por conseguinte, beirarem o caos social, talvez resgatar acepções filosóficas seja um promissor e fértil recomeço para legitimar o papel transformador da educação, em especial, a respeito do convívio social, de maneira que nos poupe dos humilhantes e desprezíveis atos de diárias agressões em relação ao outro. Assim, possivelmente, poderemos celebrar a inerente multidiversidade e a importância de cada um de nós para o “bem comum” no mundo, independentemente da nossa condição socioeconômica, etnia, idade, religião, gênero e orientação sexual, como singelamente entoa Lenine, cantor e compositor pernambucano: “A humanidade caminha/atropelando os sinais/A história vai repetindo/os erros que o homem traz/O mundo segue girando/carente de amor e paz/Se cada cabeça é um mundo/cada um é muito mais”.

*  Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP.