KELMA JUCÁ

O prelúdio da minha ‘senhorice’

Não sou a mesma, de fato. A expressão recorrente que me falavam os outros sobre conservar a aparência de menina, enfim, mostra-se uma tremenda ilusão

Por Kelma Jucá | 13/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min
Jornalista

Ano novo. E eu, cada vez mais, velha. Não estou reclamando, apenas constatando. Já atravessei algumas décadas a ponto de observar os meus primeiros cabelos brancos e as tais rugas estáticas no próprio rosto.

Não sou a mesma, de fato. A expressão recorrente que me falavam os outros sobre conservar a aparência de menina, enfim, mostra-se uma tremenda ilusão. Nem posso dizer que foi um processo. Eu acordei velha.

Foi no segundo semestre do ano passado, 2023. Estava numa loja no centro de Taubaté, concentrada em ler um rótulo de hidrante para cabelos – “Essas letras estão ficando progressivamente menores”, pensava eu –, quando ouvi bem de longe uma voz que pouco a pouco pareceu mais próxima: “Senhora! Senhora? Senhora!”.

Era uma vendedora que chamava alguém. Demorei a entender que era eu. Ao ser incomodada por ela, que me tirou de uma leitura desafiadora, virei para trás e me deparei apenas com uma gôndola repleta de itens de beleza para mãos, pés e rosto. Foi então que a ficha caiu. Eu me tornara uma senhora!

“Você está falando comigo?”, retruquei tão logo possível, em tom irônico. A minha intenção era que ela soubesse que este pronome de tratamento não era habitué em minha vida pessoal. Foi aí que a pirralha, que deveria ter 20 e pouco, disse animada: “Isso, senhora!”.

Não sei se foi combinado entre eles, mas o fato é que depois desse episódio passei a ser “senhora” para quase todo prestador de serviços. Da cafeteria ao posto de gasolina. Admito que me incomodei no início, pois supunha ter ainda bastante colágeno nas maçãs do rosto e o mesmo viço na pele de quem possui uma rotina de “skincare” antes disso virar modinha entre as blogueiras. Aliás, bem antes de saber que cuidar do maior órgão do corpo humano, mais especificamente no rosto, recebeu de alcunha este estrangeirismo – o que repudio com força.

Eu ainda lembro nitidamente quando me chamaram de moça pela primeira vez. Bateram palmas do lado de fora da casa. Estávamos somente eu e meu irmão. Fui atender e era um homem pedindo algo – não me recordo o quê, mas sei que fui educada. E ele me respondeu: “Obrigado, moça!”.

Uau! Aquilo fez meu coração pulsar e num ímpeto corri direto para o grande espelho no quarto dos meus pais. Me olhei de cima a baixo. Me aproximei do meu reflexo, me admirei e concluí que eu deveria começar a “fazer a sobrancelha”. Eu nem tinha menstruado ainda, mas o reconhecimento de que eu não era mais uma criança dava os seus primeiros sinais.

Contei para a minha mãe o fato inédito, e ela deu de ombros. Não entendi à época. Eu nem deveria ter 12 anos. E, claro, ela não me autorizou a retirar o excesso de pelos da minha “monocelha”. Refletindo agora, com 43, testemunho que ela ainda me chama de bebê.

Passada a experiência dramática na loja de cosméticos, quando me tornei senhora aos olhos dos outros, fiz o que uma pessoa inteligente e de bom senso faria. Adotei os óculos como um bom companheiro em dias de compras e voltei a ler sem grande esforço o rótulo de qualquer produto. Tal qual uma menina.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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