EM PORTUGAL

'Ele sangrava muito', diz mãe de menino que teve dedos decepados

Por João Gabriel de Lima | da Folhapress
| Tempo de leitura: 5 min
Reprodução
Nívia Estevam, de 27 anos, e seu filho que teve os dedos decepados em escola de Portugal
Nívia Estevam, de 27 anos, e seu filho que teve os dedos decepados em escola de Portugal

Uma soldadora brasileira de 27 anos preparava uma comemoração especial para os dez anos de seu filho na quinta-feira (20). Ele acordaria com um café da manhã especial e, à noite, a família inteira -o filho, ela, sua mãe e seu marido- sairia para jantar. A celebração ficou em suspenso depois do que ocorreu na última segunda-feira (10) -um caso cuja repercussão em Portugal atingiu até a esfera política.

Relembre o caso: Criança brasileira tem dedos decepados por colegas em Portugal 

Por volta das 10h30, o menino saiu da classe no intervalo das aulas para ir ao banheiro. Dois de seus colegas o seguiram e, segurando a porta, ameaçaram trancá-lo no banheiro. O filho da soldadora resistiu, e as pontas de seus dedos médio e indicador da mão esquerda, presos na porta, foram decepados. Já há algum tempo ele vinha sendo vítima de bullying de outros alunos -cinco dias antes havia chegado em casa com o pescoço roxo e marcas de enforcamento.

Nascida no Pará, ela é neta de portugueses, o que lhe dá dupla nacionalidade. Em 2018 emigrou para a região de Aveiro, onde trabalhou primeiro como esteticista e, depois de fazer um curso, tornou-se soldadora. No início deste ano, ela e o marido -que tem a mesma profissão e é padrasto de seu filho- mudaram-se para Souselo, vila de menos de 3.000 habitantes no município de Cinfães, no norte de Portugal. O salário numa fábrica de ônibus compensava, e lá conseguiriam morar numa casa maior.

O filho da soldadora foi matriculado na Escola Fonte Coberta, um colégio público em Souselo. O menino se queixou algumas vezes à avó que os colegas implicavam com sua pronúncia, dizendo que "aprendesse a falar direito". "Desde pequeno eu fiz questão que meu filho não se desligasse das suas origens, apresentei a ele o carimbó paraense e cozinhava a comida da nossa terra", diz. "Queria também que ele falasse como brasileiro. Agora não sei se fiz a coisa certa."

Na segunda-feira, a soldadora foi chamada à escola meia hora depois da violência contra seu filho. "Ele sangrava muito, não sei como aguentou tanta dor." Foram duas horas até que ele fosse atendido no Hospital São João, no Porto -o hospital mais perto, na cidade de Penafiel, sofre com a falta de médicos devido à crise do Sistema Nacional de Saúde português. No dia seguinte, o filho fez uma cirurgia que durou três horas. Não foi possível reimplantar as duas pontas de dedos decepadas porque uma delas não foi recolhida pela escola.

A soldadora foi orientada a informar o caso à Polícia de Segurança Pública, equivalente em Portugal à Polícia Militar brasileira. "Num primeiro momento não quiseram registrar queixa-crime, disseram que não aceitariam que se falasse de racismo nem xenofobia, pois, segundo eles, essas coisas não existem em Portugal", diz ela. Sem dinheiro para contratar um advogado, ela decidiu abrir a conta privada que mantinha no Instagram e fazer um apelo nas redes sociais.

Imediatamente dois grupos de advogados que prestam assistência a imigrantes brasileiros no norte de Portugal abraçaram o caso sem cobrar honorários. O coletivo Saber Direito Portugal cuidará do processo na esfera cível, e o grupo Comunidade Penal, no âmbito penal. A coordenação do caso ficou a cargo da advogada Catarina Zuccaro, que vive há 25 anos em Portugal.

"A escola é responsável pela proteção dos alunos dentro de suas dependências e pode ser responsabilizada pelo que aconteceu", diz a advogada Ana Paula Filomeno, do grupo Saber Direito. Segundo ela, a Escola Fonte Coberta pode ser enquadrada no Regime de Responsabilidade Civil do Estado, segundo a Lei número 67, aprovada em Portugal em 2007.

Foi o grupo Saber Direito que apresentou a queixa coletiva contra o cidadão de Aveiro que, dois meses atrás, postou no Instagram um vídeo oferecendo 500 euros a quem lhe "trouxesse a cabeça de um brasileiro". A violência contra o filho da soldadora pode ser enquadrada como crime de ódio? "Vai depender da apuração que está sendo feita, mas é uma hipótese", diz Filomeno. O filho é uma criança negra.

Um levantamento recente mostrou que os crimes de ódio vêm crescendo em Portugal. O país recebeu destaque negativo num relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância apresentado em junho deste ano. De acordo com o documento, Portugal vem apresentando "um aumento acentuado do discurso de ódio, que visa, sobretudo, os migrantes, os ciganos, a comunidade LGBTQIA+ e as pessoas negras". O número de crimes assim classificados subiu de 63 em 2019 para 347 em 2024, segundo dados da polícia portuguesa.

As recentes restrições legais à imigração, promovidas pela aliança de centro-direita que governa o país, levaram o Chega, partido da ultradireita, a radicalizar no extremismo ?envolvendo inclusive crianças. Seu líder, André Ventura, leu na Assembleia da República, o parlamento português, a lista de presença de uma escola, com o objetivo de mostrar que havia vários sobrenomes de origem asiática. Candidato à presidência nas eleições marcadas para o próximo dia 18 de janeiro, estampou num outdoor a frase "Isto não é o Bangladesh", num ataque à comunidade sul-asiática que vive em Portugal.

A deputada Mariana Mortágua, do partido Bloco de Esquerda, cobrou do governo o registro do número de casos de violência em contexto escolar relacionados com xenofobia e racismo. Cobrou também uma estratégia para prevenção de casos como o do filho da brasileira e investigações aprofundadas. Em nota publicada pelo jornal Público Brasil, o governo respondeu que "a Inspeção Geral da Educação e Ciência determinou a abertura de um processo de averiguações sobre o incidente".

A advogada Marcela Camargo, do grupo Comunidade Penal, disse à Folha que não se pode ir contra os menores que perpetraram a violência, mas que será averiguada uma eventual negligência da escola. "Meu objetivo é que alguém seja responsabilizado", diz a soldadora. "Deixei meu filho íntegro na escola e não cuidaram dele, não me falaram da gravidade do quadro quando eu cheguei, e não prestaram atenção nos alertas de bullying que eu havia feito anteriormente."

O dia seguinte ao episódio de violência foi o de São Martinho, tradicionalmente comemorado com vinho e castanhas no norte de Portugal. Apesar do incidente, a escola não cancelou a celebração. A brasileira diz que as mães dos outros alunos fizeram pouco caso do episódio no grupo de WhatsApp da escola. Ela e o marido decidiram entregar a casa e ir embora da cidade -o contrato com a empresa de ônibus se encerrou recentemente. Grávida de um segundo filho, a soldadora espera o resultado da consulta pós-cirúrgica marcada para esta quarta (19) para decidir como irá comemorar os dez anos do primogênito.

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