Esse é o título do livro de Gabor Maté, médico húngaro-canadense, que entende ser tóxica a sociedade em que vivemos, o que causa anomalias mentais e físicas generalizadas. Começa o livro com a melancólica observação de que “na sociedade mais obcecada por saúde que já existiu, as coisas não vão nada bem”.
Comportamentos tóxicos e destrutivos explicam o aumento sem precedentes de problemas de saúde. Nos Estados Unidos, a nação mais poderosa do planeta, 70% dos adultos tomam pelo menos um medicamento por dia. 40% tomam dois. E o Brasil? Seria diferente?
Pelo número de farmácias que existem numa proporção análoga à de templos evangélicos, a situação poderia ser até pior.
A ansiedade, o estresse, a competitividade, a solidão involuntária, a preocupação exagerada com a aparência ou com o julgamento dos outros, são condições normalmente assimiladas por uma sociedade enferma.
A toxicidade é explicada por Gabor Maté pelas suas consequências aparentes: taxas crescentes de vício, profusão de diagnósticos de saúde mental abalada, doenças autoimunes, câncer em ascensão, crianças diagnosticadas com problemas de atenção e de comportamento. Espectros autistas múltiplos, falta de entrosamento nas salas de aula, irritação constante, difuso mal-estar, sensação de desconforto.
Para o especialista em trauma, vício e saúde, as necessidades humanas não são teóricas. Vêm da evolução natural. Crianças têm necessidade de segurança emocional absoluta. Precisam ser aceitas, amadas por quem são, por si mesmas, independentemente de suas características personalíssimas. Têm de vivenciar suas emoções e não prescindem de pertencimento. Se a cultura não consegue atender a tais expectativas, ela é tóxica.
O adulto também sente falta de um sentido de pertencimento, de conexão, de significado, de propósito. O ideal do convívio é a comum unidade de objetivos. A coesão entre os partícipes da convivência, que aspira à harmonia. Contudo, na sociedade consumista em que estamos imersos, o que se vê é a acirrada competitividade, a agressividade sem limites, o egoísmo e o individualismo levado a última instância.
Embora o autor não conheça profundamente a realidade brasileira, ele sabe que, historicamente, é uma sociedade estressada, com enorme desigualdade racial, tremendo ataque aos povos indígenas e a crescente destruição da Amazônia. Seu livro se chama “O mito do normal”, pois parte da presunção de que estamos acostumados a uma condição sofrível e nos conformamos, achando que isso é normal.
Isso ocorre no nível social. Já no nível individual, as pessoas têm condições de curar seus traumas. Precisam de apoio e ajuda, mas a situação é reversível. Ainda que o mundo não mude, a sua relação com ele é suscetível de mudar. Nada é imutável e é preciso conscientizar-se de que o indivíduo não é aquela criaturinha pequena e indefesa à mercê do cataclisma. Cada qual pode assumir algum controle, tomar decisões em sua vida pessoal. Só que para os excluídos, pobres e oprimidos, essa opção se torna quase impossível.
Quanto ao vício, não há substância ou comportamento viciante em si. Nem mesmo as redes sociais, hoje acusadas de causarem dependência. O vício se manifesta quando a pessoa encontra em algo prazer ou alívio temporário. Mas depois passa a sofrer consequências negativas e não pode mais se libertar do uso. “Pode ser heroína, álcool, cocaína, sexo, jogo, compras, internet, videogames, esportes radicais, qualquer coisa”. Não é o comportamento que vale. É a relação do indivíduo com ele.
A leitura de “O mito do normal” pode nos auxiliar a saber se somos vítimas da toxicidade atual de nossa sociedade ou se estamos livres dela.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo