PERSONA

Rogério Cardoso: 'O primeiro passo não é na esteira'

Por Da Redação |
| Tempo de leitura: 16 min

A seção Persona de hoje traz uma entrevista com o educador físico Rogério Cardoso, também colunista do JP. Além de dicas para fazer atividades físicas e de vida saudável, o profissional também fala sobre a moda fitness do momento: as 'canetinhas' emagrecedoras. Confira!

Com a chegada do verão, muitas pessoas decidem começar atividades físicas de última hora. Qual é o maior erro que elas cometem nesse período?

Eu diria que o maior erro é a pressa fantasiada de boa intenção. A pessoa passa o ano todo se prometendo que “depois começa” e, quando chega o verão, quer resolver em poucas semanas o que foi construído em meses às vezes anos. Aí entra a ansiedade, ela tenta pular etapas, aumenta demais o volume ou a intensidade dos treinos, entra em dietas malucas, e isso abre espaço para frustração, lesão e, em casos mais graves, até problemas de saúde.

O corpo não funciona no modo “mutirão de verão”, ele funciona no modo “projeto de ano inteiro”. O ideal é começar devagar, respeitar o nível em que a pessoa está hoje e ir construindo, passo a passo, uma base sólida: força, condicionamento, sono, alimentação minimamente organizada. Assim, o exercício deixa de ser uma fase e vira um hábito, quase como escovar os dentes.
Mesmo com isso, é normal ganhar um pouco de peso nas festas de fim de ano, somos humanos, não robôs. Mas, quando você se exercita o ano todo, o metabolismo trabalha a seu favor, os marcadores de saúde relacionados à gordura corporal melhoram e aquele “excesso das festas” tende a ser passageiro. Quando o cuidado é contínuo, o verão deixa de ser um momento de desespero e passa a ser só mais uma estação em que você colhe o que plantou ao longo do ano.

Para quem está totalmente parado, qual é o primeiro passo seguro para iniciar uma rotina de exercícios?

Eu sempre digo que o primeiro passo não é na esteira e nem academia e sim no consultório. Antes de qualquer treino, o ideal é passar por uma consulta médica. Eu dou aula para alguns médicos aqui em Piracicaba e, em conversa com eles, a recomendação é clara: mesmo quem já se exercita com regularidade deveria fazer pelo menos um check-up por ano. Agora imagine quem está totalmente parado.

A verdade é que, por fora, a gente pode até parecer “bem”, mas por dentro talvez existam condições silenciosas como pressão alta, alterações cardíacas, colesterol lá em cima  que só um exame consegue mostrar. E, por mais que a gente fale muito dos benefícios do exercício para emagrecimento, saúde e longevidade, tudo isso precisa estar apoiado em segurança. O médico é quem dá esse sinal verde. O trabalho com eles é primordial e essencial.

Passada essa etapa, entra alguém tão importante quanto o médico nesse processo: o profissional de Educação Física formado e regulamentado. Ele é quem vai traduzir o “ok” do médico em um plano real para a sua vida: intensidade certa, progressão adequada, respeitando seu histórico, suas limitações, seu tempo e, principalmente, sua história.

Hoje muita gente tenta seguir treino de influencer ou até pedir sugestão para a inteligência artificial. Isso pode até inspirar, mas não substitui o olhar humano. Porque tem uma coisa que nem a influência digital, nem a IA conseguem alcançar completamente: a sua singularidade. Cada pessoa é um universo biológico, emocional e social diferente. E é justamente essa individualidade que, quando respeitada, faz o exercício deixar de ser uma tortura de verão e virar um caminho consistente para conquistar, com calma, todos os objetivos que você traçou.

Existe um tipo de treino mais indicado para iniciantes que buscam melhorar o condicionamento e perder peso ao mesmo tempo? 

Eu gosto de pensar que o “melhor treino” para o iniciante não começa no músculo, começa na cabeça. O mais indicado é aquele que a pessoa realmente consegue fazer, com regularidade, sem se odiar no processo. Se ela detesta o que está fazendo, pode até emagrecer um pouco, mas não sustenta. Então, o primeiro filtro é simples: qual atividade você olha e pensa “ok, isso eu topo tentar”? Falando de prática, para quem está começando e quer melhorar condicionamento e perder peso, uma combinação funciona muito bem: caminhadas em ritmo constante + treinamento de força.

A caminhada é quase sempre o primeiro grande aliado. É democrática, de baixo impacto e já traz um ganho importante de condicionamento quando feita num ritmo contínuo, em que a pessoa consegue falar, mas sente que está se esforçando. Com alguns alunos mais velhos, por exemplo, eu uso muito a meta de passos diários. Parece simples, mas dar 6, 7, 8 mil passos por dia com intenção já muda a forma como o corpo reage ao mundo.
Do outro lado, o treino de força seja musculação, funcional, pilates bem orientado ou exercícios com o próprio peso do corpo virou protagonista, e com razão. Ele ajuda a preservar e, em muitos casos, aumentar a massa magra. E músculo não é só “estética”: é tecido metabolicamente ativo. Quanto mais massa muscular você tem, maior tende a ser seu metabolismo basal, ou seja, você gasta mais energia até parado. Isso, no longo prazo, é ouro para quem quer controlar peso e envelhecer com qualidade.

Quais sinais o corpo dá para alertar que o treino está sendo exagerado ou inadequado para o nível da pessoa? 

O corpo costuma sussurrar antes de gritar. O problema é que muita gente só escuta quando ele já está gritando. Alguns dos primeiros sinais de que o treino está exagerado ou inadequado aparecem nas entrelinhas do dia a dia: o sono começa a piorar, a pessoa até deita cansada, mas dorme mal, acorda no meio da noite, ou levanta com a sensação de que não descansou. O cansaço deixa de ser “um cansaço bom de treino” e vira um peso que acompanha o dia inteiro, subir um lance de escadas parece mais difícil do que deveria.

A motivação também dá sinais. Quando o treino está adequado, mesmo com preguiça aqui e ali, existe um certo prazer em ir. Quando está exagerado, o exercício começa a ganhar cara de obrigação pesada, a pessoa fica irritada, mais impaciente, às vezes até com queda de concentração no trabalho ou nos estudos. O corpo fala, mas a cabeça também reclama.

Fisicamente, dores que não passam são um alerta importante: articulações reclamando o tempo todo, musculatura dolorida por muitos dias, pequenos incômodos que vão virando lesão. A performance é outro termômetro: se a pessoa está treinando “forte” e, mesmo assim, começa a render menos, precisa fazer mais força para o mesmo resultado, sente o coração disparado em esforços que antes eram tranquilos, isso é um recado claro de que algo está fora de ponto.

É aí que entra o papel do profissional de Educação Física e do personal trainer: ajustar a dose. Treinar bem não é treinar até cair, é encontrar o equilíbrio entre intensidade, volume e descanso. Eu falo muito isso para meus alunos de corrida: treino é treino, jogo é jogo. No treino, você constrói; no “jogo” que é a prova, o objetivo, o dia especial  você entrega o que construiu. Se todo dia vira jogo, o corpo quebra antes de brilhar.

A busca pelo “projeto verão” muitas vezes gera ansiedade e pressa. Como trabalhar a mentalidade de longo prazo para uma vida realmente saudável? 

Eu costumo dizer que o problema não é o “projeto verão”, é quando a vida da pessoa cabe só num verão. A mente entra em modo urgência: quer emagrecer em poucas semanas o que levou anos para acumular. Isso gera ansiedade, culpa e aquela sensação de “nunca é suficiente”.

Uma das referências que mais gosto é o livro Hábitos Atômicos, que mostra o poder das pequenas ações consistentes. Em vez de pensar em treinar todos os dias, o máximo de tempo possível, prefiro trabalhar com os alunos a ideia de constância possível: menos glamour, mais compromisso. Porque quando a pessoa cria a regra mental de “tenho que ir todo dia”, basta faltar uma vez para vir o discurso interno: “tá vendo, você não consegue”. E aí, o que era para ser saudável vira mais uma prova de fracasso.

Eu trabalho muito com a lógica do longo prazo: não é o treino perfeito de hoje que muda sua vida, é a soma de treinos “imperfeitos”, porém feitos, ao longo de meses e anos. E isso passa por tornar o exercício algo encaixado na rotina, como um compromisso consigo mesmo, e não um castigo de temporada.

O desafio é que vivemos em um mundo rápido, de promessas imediatas, e a paciência virou quase uma virtude radical. Mas quando a gente ajusta a mente para pequenas doses diárias de movimento, 10 minutos de caminhada, um treino de força 2 ou 3 vezes por semana, subir mais escadas, sentar e levantar do sofá sem apoio a chance de continuar é muito maior.

No fundo, é uma troca de narrativa: em vez de “projeto verão”, pensar em “projeto vida toda”. O verão vira só um capítulo bonito de uma história que você está escrevendo há muito tempo, e não o único momento em que você tenta, desesperado, consertar tudo. Quando a pessoa entende isso, o corpo muda… mas antes, quem muda é a relação dela com o próprio tempo.

No calor mais intenso, quais cuidados extras devem ser tomados durante a prática de exercícios ao ar livre? 

Quando o calor aperta de verdade, o corpo passa a trabalhar em “modo dupla função”: ele precisa responder ao esforço do exercício e, ao mesmo tempo, tentar se resfriar. Se a gente ignora isso, o que era para ser saúde pode virar risco. Em dias muito quentes, especialmente nesse intervalo entre 9h e 17h, como temos vivido em Piracicaba, a minha primeira recomendação é direta: se puder, evite treinar nesse horário. Sempre que possível, prefira bem cedo pela manhã ou mais ao fim da tarde, quando o sol está mais baixo e a sensação térmica é menos agressiva.

As escolhas que fazemos também ajudam muito. Roupas escuras e pesadas, principalmente o preto, acabam absorvendo mais calor e transformando o treino em um pequeno “forno ambulante”. Já as roupas claras, leves, com tecidos tecnológicos como a poliamida, favorecem a ventilação e a liberação do calor do corpo, deixando o exercício um pouco mais confortável. Em um clima quente e seco como o nosso, a hidratação deixa de ser detalhe e vira estratégia: é importante começar o treino já hidratado, beber pequenos goles de água durante a atividade e repor depois. Em treinos mais longos ou intensos, pode ser necessário pensar também na reposição de sais minerais, sempre com orientação adequada.

Outro ponto fundamental é ajustar a intensidade. Calor não combina com teimosia. Em dias muito quentes, vale reduzir o ritmo, encurtar a duração do treino, escolher percursos com mais sombra e aceitar que pace, recorde pessoal ou melhor tempo ficam para outro dia. O corpo também manda recados claros quando passa do limite: tontura, dor de cabeça, enjoo, calafrios, pele muito quente e seca ou batimentos muito acelerados são sinais de alerta para parar, se resfriar e se hidratar, não para “forçar mais um pouco”.

As chamadas “canetinhas emagrecedoras”, como Monjaro e Ozempic, estão cada vez mais populares. Como você vê o uso desses medicamentos no processo de emagrecimento?

Eu vejo essas “canetinhas emagrecedoras” como um ótimo exemplo de algo que é, ao mesmo tempo, um avanço gigante e um grande risco, dependendo de como é usado. Do ponto de vista da medicina, tecnologias como Ozempic, Mounjaro e afins são fantásticas: elas ajudam muito pessoas com obesidade, sobrepeso importante e diabetes tipo 2, justamente quem tem risco real e aumentado de adoecer e morrer mais cedo. Para esse grupo, quando bem indicadas e acompanhadas por médicos, esses medicamentos podem reduzir complicações, melhorar qualidade de vida e até diminuir custos de saúde no longo prazo.

O problema não é a caneta, é a cultura que segura a caneta. A gente vive um tempo em que o corpo virou vitrine, e muita gente que não precisaria desse tipo de intervenção acaba usando em nome de um padrão estético que nem sabe de onde veio. Na prática, a gente sabe: vem de blogueiras, filtros, corpos “perfeitos” e, muitas vezes, irreais, que vão moldando silenciosamente a cabeça principalmente de mulheres que já se sentem pressionadas a caber em um certo tipo de corpo. Aí um recurso que deveria ser prioritário para quem tem risco clínico de verdade começa a ser tratado como atalho rápido para entrar em um vestido ou para o “projeto verão”.

Na minha visão, esses medicamentos deveriam ser, sobretudo, ferramenta de cuidado para quem tem obesidade, sobrepeso com comorbidades e diabetes, pessoas em que o excesso de gordura não é só “questão estética”, é um fator de risco para o coração, para o fígado, para o cérebro. Nessas situações, usar a caneta faz sentido dentro de um plano maior, que inclui alimentação, movimento e acompanhamento multidisciplinar. Só que na vida real existe outra camada: o acesso. São remédios caros, e, muitas vezes, quem mais precisaria é justamente quem menos consegue pagar.

E tem um ponto que eu sempre faço questão de lembrar para os meus alunos: nenhuma caneta injeta hábito. Ela pode ajudar a reduzir o apetite, melhorar marcadores clínicos e facilitar o processo, mas não substitui o encontro com o próprio corpo em movimento, a construção de força, o aprendizado de comer melhor, o sono cuidado, a relação mais gentil com o espelho. Se a pessoa usa o remédio sem mudar o entorno, rotina, ambiente, cabeça, corre o risco de emagrecer na balança, mas continuar presa nas mesmas armadilhas de antes.

Para quem faz uso desses medicamentos sob orientação médica, como deve ser a adaptação da rotina de exercícios? Há restrições ou pontos de atenção? 

Essa pergunta é fundamental, porque muita gente vê a canetinha como protagonista e esquece que o corpo inteiro está em cena junto com ela.
Para quem usa esses medicamentos com orientação médica, o exercício não é um extra, é quase um antídoto contra um efeito colateral silencioso: perder peso errado. Já escrevi e falo muito sobre isso quando trato de obesidade sarcopênica, que é quando a pessoa emagrece, mas leva junto muita massa magra no processo. Ela até vê o número da balança cair, mas o que fica é um corpo com menos músculo, mais frágil, e um metabolismo mais lento. Quando o remédio é suspenso e os hábitos continuam os mesmos, o que costuma voltar não é o músculo que foi embora, é a gordura. Aí o organismo fica em desvantagem.

Por isso, para quem usa Ozempic, Mounjaro e afins, eu vejo o treino de força como peça obrigatória do roteiro. Musculação, treino funcional, exercícios com o próprio peso do corpo, pilates bem estruturado: qualquer um desses pode ser a base para preservar e, quando possível, ganhar massa muscular ao longo do processo de emagrecimento. É o músculo que ajuda a segurar o metabolismo, protege articulações, melhora a postura, dá autonomia no dia a dia. Sem ele, o remédio faz o papel dele na glicemia e no apetite, mas o corpo como sistema fica mais vulnerável.

Na prática, a adaptação da rotina de exercícios precisa considerar alguns pontos. Como esses medicamentos muitas vezes reduzem o apetite e podem causar enjoo ou mal-estar em algumas pessoas, não é o momento de inventar heroísmo em treinos. É importante começar de forma gradual, ajustar intensidade e volume, respeitar os dias em que o corpo está se adaptando mais ao remédio, evitar treinos muito intensos em jejum prolongado e sempre conversar com o médico sobre sintomas como tontura, fraqueza ou mal-estar durante o exercício, especialmente em quem também usa medicação para diabetes.

É possível alcançar resultados de emagrecimento consistentes apenas com treino e alimentação equilibrada, sem recorrer a medicamentos? 

Com certeza, e eu diria que essa ainda é a rota mais poderosa e sustentável para saúde e longevidade. Treino bem dosado e alimentação equilibrada formam uma dupla que talvez não tenha o glamour das “soluções rápidas”, mas tem algo muito mais valioso: constância e profundidade de resultado. Quando você organiza a rotina para se movimentar com regularidade, como caminhadas, treino de força, algo que eleve o coração e preserve a musculatura e combina isso com uma alimentação que faz sentido para a sua realidade, com mais comida de verdade, menos exagero e menos culpa, o corpo começa a responder. Às vezes não na velocidade que o ego gostaria, mas na velocidade que a saúde agradece.

É claro que existem situações em que medicamentos são importantes: pessoas com obesidade, diabetes, quadros mais graves, precisam, muitas vezes, de um apoio farmacológico bem indicado. Mas mesmo nesses casos, o remédio entra como complemento, não como substituto de movimento e nutrição. Para quem não tem indicação clínica, apostar no básico bem feito não é “menos”, é maturidade. É entender que emagrecer de forma consistente não é só fazer a balança descer, é preservar músculo, melhorar sono, regular hormônios, reduzir inflamação, ganhar autonomia, ficar mais forte por dentro e por fora.

Para encerrar: qual é o conselho mais importante que você daria para quem quer entrar no verão de forma saudável, segura e sustentável?

Eu diria que o conselho mais importante é: comece se mexendo, do jeito que dá, onde você está, com o corpo que você tem hoje. Caminhar no quarteirão, subir escadas, fazer alongamentos em casa, dançar na sala… pouco importa a forma exata no começo. O que importa é tirar o corpo da inércia e mostrar para ele, e para você mesmo, que movimento faz parte da sua vida.

Com o tempo, à medida que esse movimento vai virando hábito, entra a parte do cuidado mais estruturado: procurar um médico para um check-up, entender como está sua saúde por dentro, e, depois, contar com a orientação de um profissional de Educação Física para organizar os treinos de forma segura, progressiva e adequada à sua realidade. Não é sobre virar atleta de um dia para o outro, é sobre construir um estilo de vida em que o exercício seja tão natural quanto tomar banho ou escovar os dentes.

Eu trabalho com gerontologia e geriatria e repito sempre aqui no jornal: estamos caminhando para viver, tranquilamente, até os 90, 100 anos. A medicina e a ciência do exercício avançaram muito. Mas viver mais não basta. O que meus alunos idosos mais desejam, em uníssono, é autonomia: poder subir e descer da calçada sem medo, carregar as próprias sacolas, brincar com netos, viajar, tomar banho sozinho, continuar decidindo a própria vida. E isso não se compra em farmácia. Isso se constrói com movimento, regularidade e respeito ao corpo.
Não existe pílula mágica para o verão nem para a longevidade. A “pílula” é o suor. É o treino que você faz mesmo com um pouco de preguiça, é a escolha de se cuidar quando ninguém está vendo, é aquele passo a mais quando o mais fácil seria desistir. A boa notícia é que isso não depende de modinha, nem de genética privilegiada, nem de ter o “corpo perfeito”. O verão passa. O seu corpo fica com você até o fim. E é com ele que vale a pena fazer as pazes e caminhar lado a lado.

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