Wagner Nacarato nasceu em 1961 e logo despertou para o teatro e para as artes. Eu o conheci ainda menina, assistindo às suas peças, uma delas sobre a Inconfidência Mineira, imperdível, mas fui entrelaçar forte amizade quando ele se tornou professor de teatro de minha filha, Isadora.
Em princípio, a atitude e o rosto dele assustavam. Parecia exigente demais, confiante demais, profissionalíssimo, mas logo a carapuça caía e ele se mostrava como era, sensível, amigo, capaz de chorar facilmente. As meninas, suas alunas, diziam que era uma cebola, cascudo só por fora, mas molinho por dentro. Elas sacaram rapidamente a alma do meu amigo e o chamavam de Meu Malvado Favorito.
Fui ficando íntima dele e ele de mim. Tínhamos uma paixão em comum, a autobiografia da bailarina Isadora Duncan (por isso o nome de minha filha). Ele magicamente trouxe sua história aos palcos, idealizando uma Isadora criança, uma sonhadora, entre ondas do oceano e seu vagar fluido por entre a dança moderna. Minha filha foi uma das Isadoras-criança.
A gente falava sobre tudo, com uma profundidade sem fim. Ele conhecia minha alma e eu a dele.
Ríamos muito, mas muito mesmo. Uma capacidade imensa de entender o que se passava pelo espírito feminino e ele, como eu, não passava pano para a hipocrisia ou pela necessidade de viver de aparências.
Ele amava muito, talvez a sua atitude mais desaforada com a vida tenha sido se entregar às paixões.
Todas elas, o amor, a literatura, o teatro, as viagens, as companhias. Estar com ele era sempre um mergulho profundo na psiquê humana.
Durante a pandemia, fui ficar com ele em sua casa. A gente falava de literatura, trocava livros e poemas. Muito espiritualizado, estudava a fundo as religiões e estava contente em encontrar resquícios de judaísmo em sua família e seguir a tradição.
Ele amava Paris. Me dizia o que encontrava em cada ida, em cada esquina, nas apresentações teatrais, às vezes a céu aberto, em plena noite, nos cemitérios. Vou dizer que era, sem dúvida alguma, um franco-brasileiro.
Ao final, sei que sentia dores. Esta doença maldita que o perseguiu por décadas dava poucas tréguas.
Dessas tréguas, o câncer era redimido por cirurgias espirituais, que ele acreditava piamente que mudara sua vida e que lhe garantira mais uns anos de jornada.
Em nossa última conversa, pedi que fosse até onde aguentasse. Que não fizesse grandes esforços, que seu espírito era iluminado e que a vida terrena, efêmera. Ele concordou comigo.
Nacarato sempre estará vivo. Em cada um dos seus estudantes que hoje palestram, discursam e trabalham com desenvoltura neste país, em técnicas aprendidas com seu teatro. Das meninas-isadoras que o idolatram para sempre em seus corações. Dos espíritos moços que foram acalentados pela arte, na transição para a adolescência. De quem passava pelo Teatro Polytheama e o encontrava à espera, sempre naquela porta, pronta para o espetáculo e magia. Deste teatro abençoado, que ele amava e cuidou com esmero e devoção.
Cada vez que eu adentrar o Polytheama me deparar com teu teatro amado, estarei contigo, meu amigo, sussurrando aos seus ouvidos a beleza da música, da dança e do texto. Que as deusas, tuas ninfas inspiradoras, te protejam para sempre!
Ariadne Gattolini é jornalista e escritora. Pós-graduada em ESG pela FGV-SP, administração de serviços pela FMABC e periodismo digital pela TecMonterrey, México. É editora-chefe do Grupo JJ