De todos os super-heróis disponíveis no quase infinito universo da cultura pop, Clark Kent é de longe o que menos gosto. Forte demais, justo demais, bonito demais, bom demais, perfeito demais. Isso tudo me soa sem graça. Ele é praticamente um Deus impecável, um modelo que deixaria até mesmo Santo Agostinho impressionado. Eu sempre gostei dos heróis quebrados no qual o maior vilão são eles mesmos, tipo o Wolverine e sua animalidade ou o Batman e suas crises de depressão. O Superman foi feito para não perder e muito menos para se perder.
Dito isso, tudo o que eu conhecia sobre o kriptoniano era contra a minha vontade. O último (e talvez segundo) filme que assisti do homem de aço foi “Batman vs Superman”, obviamente por causa do Batman. Fiquei feliz quando o morcegão encheu a cara do super-homem de porrada. Era estranhamente bom ver algo indestrutível sendo destruído.
Mas uma verdade precisa ser dita a respeito dos últimos filmes estrelados por Henry Cavill, o Superman era muito mais sombrio do que as propostas dos quadrinhos originais. Com dúvidas e até mesmo uma certa sede desenfreada por justiça, o personagem seguia uma tendência iniciada com a franquia de Batman dirigida por Christopher Nolan de heróis mais “realistas” no sentido de serem violentos, imperfeitos e eticamente duvidosos do que os “eternos mocinhos paladinos da justiça e da bondade”. Eu deveria ter dado uma chance, mas não dei.
E nem foi por falta de tempo. Essa onda de anti-heróis já dura por mais de uma década pelo menos. O que é compreensivo, já que estamos vivendo no olho de um furacão de intolerância, violência e anti-democracia. Parece que o individualismo pós-moderno proposto por Bauman nos levou de volta para o estado de guerra descrito em O Leviatã de Thomas Hobbes. Sejamos sinceros? O momento é de “cada um por si e todos contra todos”.
O cinema é arte e como toda arte, caminha de mãos dadas com a realidade. Os filmes de herói mostram os heróis que combinam com a gente. Se você olhar para o Homem de Ferro de Robert Downey Jr., verá o avesso de um herói: egoísta, antiético, viciado. Bom, talvez isso explique o sucesso que o personagem - que sempre foi do baixo clero da Marvel - fez e faz. O anti-heroísmo de Tony Stark salvou a Marvel.
Mas aí veio o anúncio do novo filme do Superman, dessa vez dirigido por James Gunn e com uma promessa de que seria completamente diferente dessa tendência de anti-heroísmo. O bondoso e eticamente perfeito Superman voltaria para as telas para ser a pedra angular do Universo Cinematográfico da DC (exatamente como o Homem de Ferro foi para a Marvel).
Sem nenhum tipo de spoiler, mas saí do cinema me sentindo ridículo. O filme é legal e me diverti muito, mas a mensagem que me atingiu em cheio foi: ser gentil nunca fará de você uma pessoa ridícula. A gentileza do Superman foi vista pelo seu algoz, Lex Luthor, como sua grande fraqueza, quando na verdade era o seu maior triunfo.
A gentileza é um escudo bem efetivo e uma arma fascinante contra a ignorância e o mau humor. Experimente devolver um ataque com gentileza para você ver. Estamos tão acostumados a brigarmos por qualquer coisa que, quando somos confrontados com gentileza, somos desarmados na hora. Em um mundo onde a estupidez é regra, ser gentil é um ato punk.
Essa ideia no “novo punk” é, inclusive, verbalizada pelos personagens do filme. Clark Kent tenta explicar para Lois Lane que ele, mesmo sendo o mocinho, era punk. Bom, uma atitude punk é aquela que vai contra o sistema. Se a regra do sistema era se comportar bem, punk fazia o contrário, se comportando o pior possível. Se hoje a regra é o ódio, o que você acha que um punk faria? Pois é.
Mas não estou falando de uma gentileza egoísta, ou seja, aquela que tem como intenção ganhar algo em troca. Gentileza de verdade, penso eu (e Immanuel Kant também), é aquela desinteressada, aquela que não espera gentileza de volta. Ser gentil, hoje, não é só um ato punk, é um ato de coragem. Sabe o que é eu dizer “Ser gentil porque sim, ponto final”?
Na saída do cinema, eu carregava três pacotes de bolacha que eu havia comprado nas Americanas para beliscar durante o filme. A promoção era cinco pacotes por R$ 9,99. Levei para casa, pois certamente eu as devoraria nos próximos dias, mas em um dos faróis da Avenida 9 de Julho, em Jundiaí, um rapaz me abordou pedindo uma moeda para ele inteirar com o que já tinha e poder comprar uma caixinha de balas para vender. Pedi desculpas, pois eu não tinha nenhum dinheiro em espécie comigo. “Quem pede desculpa sou eu por estar pedindo dinheiro pra você”. Aquilo cortou meu coração mas me fez me lembrar das minhas bolachas. “Cara, você tá com fome? Tenho umas bolachas aqui comigo.” Ele acenou com a cabeça e disse: “Eu aceito, mas se você não se importa, eu vou dar as bolachas para aquela moça ali do outro lado da rua, ela tá com mais fome do que eu eu acho”. E lá foi ele entregar a sacola com três pacotes de bolacha. Ele foi, por um instante, o super-herói daquela moça.
A gentileza é um superpoder. Um superpoder ao alcance de todo mundo.
Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)