Em minha contribuição quinzenal ao Jornal de Jundiaí, já havia alertado em maio deste ano sobre a necessidade premente de regulação das redes sociais. Não se trata de um tema ideológico, tampouco vinculado a posicionamentos partidários, mas de uma questão jurídica, social e ética de primeira ordem. O Congresso Nacional, contudo, preferiu silenciar diante de um problema que cresce a olhos vistos, até que a denúncia pública feita pelo influenciador Felca trouxe à tona, em boa hora, a gravidade do assunto e obrigou a classe política a, ao menos, iniciar algum movimento.
Hoje, é inegável que a impunidade prevalece nas redes. E não por ausência de previsão legal, pois o Código Penal já oferece instrumentos para coibir práticas ilícitas como a corrupção de menores, a ameaça, a injúria e até a instigação ao suicídio. O problema é outro: estamos diante de um espaço comunicacional de alcance global, administrado por gigantes tecnológicas, que operam sem amarras e sem responsabilização direta no território nacional.
A experiência comparada demonstra que não se trata de invenção brasileira. Países da União Europeia avançaram na criação do Digital Services Act, justamente para obrigar as chamadas big techs a implementar mecanismos de autocontrole e sujeitá-las a penalidades severas em caso de descumprimento. O Brasil, por sua vez, ainda se perde em debates infrutíferos, permitindo que empresas multinacionais lucrem com a exploração dos dados dos usuários e, ao mesmo tempo, lavem as mãos diante de conteúdos criminosos.
É assustador perceber o quanto as redes sociais conseguem moldar comportamentos. O algoritmo nos entrega exatamente aquilo que queremos ver, reforçando preferências, enviesando a percepção da realidade e criando verdadeiras bolhas digitais. Se, por um lado, isso pode parecer inofensivo, por outro revela um perigo invisível: o de influenciar crianças e adolescentes sem qualquer filtro protetivo. Nesse cenário, o lucro se sobrepõe à dignidade da pessoa humana, princípio basilar do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
O Marco Civil da Internet, promulgado em 2014, foi um avanço importante, mas já não dá conta da complexidade atual. A lei estabelece princípios e direitos, mas não impõe às plataformas a responsabilidade objetiva de prevenir abusos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, prevê deveres do Estado, da família e da sociedade, mas não alcança com eficácia os novos mecanismos digitais de manipulação. Há, portanto, um vácuo legislativo que precisa ser urgentemente preenchido.
Do ponto de vista jurídico, a solução passa por estabelecer um regime normativo próprio para as plataformas, prevendo sanções administrativas, civis e até penais para o descumprimento de obrigações de controle. Não basta tipificar condutas de usuários; é preciso impor às empresas o dever de monitoramento, sob pena de multa, suspensão de atividades e até responsabilização solidária em casos de danos a terceiros. Essa lógica já se aplica em outros setores regulados, como o financeiro e o ambiental, e não há justificativa plausível para a exceção no campo digital.
Também é essencial ampliar a capacidade institucional do Estado. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) poderia ter atribuições mais robustas nesse campo, em diálogo com o Ministério Público e o Judiciário, para fiscalizar e exigir relatórios periódicos de transparência das plataformas. Sem esse aparato, a sensação de impunidade seguirá imperando, estimulando criminosos a se esconderem atrás de perfis falsos ou a explorarem vulneráveis sem receio de responsabilização.
Por fim, a regulação das redes sociais não pode ser confundida com censura. Pelo contrário, trata-se de garantir a liberdade de expressão em um ambiente saudável, em que direitos fundamentais não sejam atropelados pela lógica do lucro. O Brasil não pode mais assistir passivamente à colonização digital por empresas estrangeiras que exploram dados, moldam opiniões e colocam em risco nossas crianças. É hora de o Congresso Nacional romper a inércia e legislar com coragem, pois só assim deixaremos de viver nesse obscuro e assombroso reino da impunidade.
Marcelo Souza é advogado, consultor jurídico e mestre em Direito Constitucional (marcelosouza40@hotmail.com)