O vídeo recente do influenciador Felca colocou o dedo em uma ferida que muita gente preferia ignorar: estamos roubando a infância das nossas crianças. Ao expor casos de adultização explícita em redes sociais, Felca não apenas denunciou conteúdos perigosos, mas escancarou a cumplicidade de pais, produtores e plataformas que transformam filhos em moeda de troca por curtidas, engajamento e contratos publicitários.
Não é um fenômeno novo. E talvez por isso seja tão preocupante. Desde sempre houve adultos dispostos a explorar talentos infantis. Basta lembrar de Mozart (1756-1791), arrancado de uma vida comum aos cinco anos para percorrer palácios e cortes europeias, exibindo um talento extraordinário, mas também carregando responsabilidades que nenhuma criança deveria suportar. Ou do ator mirim Jackie Coogan (1914-1984), que encantou o mundo no cinema mudo e terminou processando os próprios pais para reaver a fortuna que lhe foi tomada.
A diferença é que, hoje, não é preciso um gênio musical ou um astro de Hollywood para colocar uma criança sob holofotes. Basta um celular. Ou uma dança ensaiada, seguida de uma frase engraçadinha, além de um figurino “ousado para a idade” e, com a bênção dos algoritmos, milhões de desconhecidos terão acesso irrestrito a esse conteúdo. Mais grave ainda: terão acesso para sempre.
E o que parece “apenas um vídeo fofo” frequentemente é o registro público de uma infância encurtada. São meninas de 8 anos performando coreografias sensuais, meninos de 10 sendo tratados como pequenos galãs, famílias inteiras criando personagens virtuais para seus filhos antes mesmo que eles compreendam o que significa ter uma identidade.
Quem paga a conta? Não é difícil imaginar. Psicólogos apontam consequências que vão de baixa autoestima a ansiedade crônica, passando por distorção da autoimagem e dificuldades para estabelecer limites saudáveis na vida adulta. E tudo isso porque alguém achou que “era só uma brincadeira” ou porque, para alguns, a infância virou negócio.
Felca incomodou porque falou o óbvio: não há glamour na adultização de crianças. Há descuido, há negligência e, muitas vezes, há lucro em cima de vulneráveis. É um espelho desconfortável que obriga pais, educadores e legisladores a se perguntarem: quem está realmente protegendo as crianças nesse ambiente digital?
E aqui esbarramos num problema ainda mais profundo: vivemos uma era em que a defesa das crianças e o combate firme à pedofilia acabam sendo tragicamente enfraquecidos pela histeria da polarização política. Em vez de discutirmos como proteger de fato, ficamos presos a um impasse entre “esquerda” e “direita”, onde qualquer proposta de regulação das redes sociais é automaticamente demonizada como censura, antes mesmo de ser debatida. Nesse fogo cruzado ideológico, os pedófilos agradecem... e as crianças continuam expostas.
No século XVIII, a exploração era restrita a palcos e salões. Hoje, é um palco global, sem cortinas, sem intervalo e com transmissão 24 horas por dia. O que está em jogo não é apenas a imagem de uma criança, mas a sua memória e a chance de viver o que só se vive uma vez.
Se a história nos ensina que a exploração infantil sempre existiu, a tecnologia nos mostra que agora ela é instantânea, infinita e muito mais difícil de reverter. Podemos fechar os olhos e esperar que as plataformas “se autorregulem”. Ou podemos agir: como sociedade, como famílias, como legisladores. Para garantir que a infância volte a ser um lugar protegido, e não um produto na prateleira do feed.
Porque curtidas passam. Traumas não.
Samuel Vidilli é cientista social (svidilli@gmail.com)