Conheço a moça e o companheiro há anos. Na cadeia, ele me tratava por mãe, porque perdera o contato com os laços de sangue ainda menino. Cresceu em orfanato. Depois veio o mundo, mais com trevas do que com luz. Como a Pastoral levava algumas coisas de necessidade dele, fez-me sua mãe.
Há 10 anos, mais ou menos, nos encontramos, por coincidência, no Fórum. A pedido, eu acompanhava uma moça que assinou a adoção das filhas mais novas. As mais velhas se revezavam entre a casa da avó e a da tia. As menores foram encontradas em um cômodo insalubre, em meio a pinos de cocaína. Levadas para uma instituição, a mãe, em desespero, não tinha onde buscar recursos para mantê-las. No fim, ela mesma admitiu, com muita dor, que seria melhor uma família substituta, com o propósito de que as crianças não repetissem a sua história. Em suas angústias, repetia-me sobre a casa com paredes de cores berrantes em que foi a leilão aos 12 anos. Aceitou como destino. Acontecera com outras meninas.
Para mim, estar com ela, por sua súplica foi doloroso. O segundo corte no cordão umbilical. Ela o fez pensando no bem-estar das meninas.
Na saída da audiência, deparei-me com a outra moça e o companheiro. Estavam lá por motivo parecido. Tiraram-lhes quatro dos filhos, crianças e pré-adolescentes, por viverem em meio a situações que os levariam a caminho de delitos. Os dois tentaram que ficassem, mas não conseguiram. Doeu demais. Uma recuperava a tortura dos leilões e a outra a dos abusos do padrasto.
A moça, que acompanhei, e o casal, saíram derrotados pela miséria em que viviam. Chorei com eles pela dor imensa das impossibilidades em um mundo, como disse o Papa Leão XIV em sua homilia de 22 de junho, sobre a multiplicação de pães e peixes: “Esta é a lógica que salva o povo faminto. Jesus age segundo o estilo de Deus, ensinando a fazer o mesmo. Hoje, no lugar das multidões recordadas no Evangelho estão povos inteiros, humilhados pela ganância alheia mais ainda do que pela própria fome. Diante da miséria de muitos, a acumulação de poucos é sinal de uma soberba indiferente, que produz dor e injustiça”.
Semana passada, na reunião da Pastoral da Mulher/ Magdala, a moça chegou ansiosíssima. Necessitava contar um fato antes de qualquer colocação. Mora na encosta do morro, de onde se avista os caminhos que chegam à sua construção precária. Apareceu o filho, que mora com eles, sóbrio, ao lado de uma moça muito bonita. De imediato ela reclamou. Não era essa a namorada dele até a véspera. Perguntou se já trocara de mulher em tom de reprimenda. Ele sorriu e a apresentou. Era uma das filhas dos quatro que foram encaminhados em adoção ou para família acolhedora de uma cidade na região. Ela era a mais velha. O irmão daqui a localizou pelas redes sociais. Encontraram-se naquele dia para fazerem surpresa aos pais.
Ela repetiu o seu louvor a Deus. Saber que os filhos estavam bem e eram do bem. Assoprou as dores da separação, que sangrou em todos os dias. Agradeceu, também, a Deus pela família que levou os quatro juntos, cuidou para a honradez e, agora, possibilitava que se vissem.
Deus é do encontro e do reencontro e não afasta os filhos dos desencontros. Traz sempre uma vivência de ovelha nos ombros. Bendito seja Deus!
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)