Na história das relações internacionais, poucas nações exerceram tanta influência (e ingerência) sobre outras quanto os Estados Unidos. Ao longo dos séculos XX e XXI, a América Latina tem sido campo constante dessa intervenção, seja por vias diplomáticas, econômicas ou até militares.
A recente decisão do governo estadunidense de impor tarifas de até cinquenta por cento sobre produtos brasileiros, sob a alegação de que o Brasil estaria perseguindo judicialmente um ex-presidente, é mais um capítulo dessa longa e nociva tradição.
Trata-se, sem rodeios, de uma afronta direta à soberania brasileira.
Ao atrelar uma medida comercial a um processo judicial legítimo, conduzido por instituições independentes do Estado brasileiro, os estadunidenses extrapolam qualquer limite razoável de convivência internacional. Sugerem, de forma velada, que o Brasil só terá condições justas no comércio global se obedecer a certas orientações políticas (ainda que isso signifique desrespeitar suas próprias leis e sua democracia). Mas o ex-presidente responde a investigações respaldadas por provas, conduzidas dentro do Estado Democrático de Direito. Defender que o Brasil seja punido economicamente por isso é endossar a ideia de que a Justiça só funciona quando serve a interesses externos. E pior: é aceitar que um país estrangeiro dite o que é justo ou injusto em nosso território.
A América Latina conhece bem os efeitos da ingerência estadunidense. Em 1954, na Guatemala, o presidente Jacobo Árbenz foi derrubado com apoio da CIA após uma reforma agrária que afetava a United Fruit Company. Em 1973, o Chile viu o golpe militar que depôs Salvador Allende com apoio dos Estados Unidos, instaurando a terrível ditadura de Pinochet. Na Nicarágua, os Contras (financiados por Washington) tentaram derrubar o governo sandinista. Na década de 1980, El Salvador e Honduras enfrentaram conflitos armados com ajuda militar estadunidense. E mais recentemente a Venezuela foi alvo de sanções que agravaram sua crise interna. Mas poderia citar Bolívia, Paraguai, Panamá...
Esses episódios seguem um padrão: interferência quando há reformas sociais, nacionalizações ou decisões soberanas que contrariam interesses estratégicos. E usam múltiplos mecanismos (sanções econômicas, financiamento de opositores, campanhas de desinformação e pressões diplomáticas que soam mais como ameaças).
Agora, o Brasil passa a sentir o peso dessa velha prática. A tentativa de vincular tarifas comerciais a um processo judicial é uma distorção dos fatos e sinal de que os mecanismos de pressão seguem ativos. É a mesma lógica imperialista (agora disfarçada de defesa da democracia ou dos direitos humanos) mesmo quando esses valores são ignorados se não servem aos próprios interesses.
Essa lógica de tutela externa, infelizmente, encontra eco em parte da sociedade brasileira. Há quem veja nas atitudes dos Estados Unidos um exemplo de força, de civilização ou de “salvação” contra os próprios compatriotas. Esse é o retrato daquilo que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-lata” (a incapacidade de reconhecer o próprio valor e de que tudo o que vem de fora, especialmente do Norte, é melhor e mais legítimo). Surpreendentemente, parte dos nossos próprios cidadãos aplaude: mais grave do que a interferência dos Estados Unidos é o aplauso de brasileiros que justificam ou celebram uma medida que ataca diretamente a nossa autonomia.
Em tempos de polarização, é fundamental reafirmar que a soberania nacional não pode depender da aprovação externa. Nenhum país tem o direito de nos dizer como aplicar nossas leis ou investigar quem quer que seja.
A verdadeira força de uma nação está em resolver seus próprios conflitos sem se curvar a nenhuma potência estrangeira. Soberania não se negocia.
E quem a vende por conveniência ideológica ou prestígio internacional entrega também a dignidade do próprio povo.
Samuel Vidilli é cientista social (svidilli@gmail.com)