O que aconteceu na missa da noite do domingo dia 22 de junho na Catedral Nossa Senhora do Desterro, em Jundiaí, ultrapassa os limites do absurdo e nos obriga a refletir com seriedade. Relembremos o caso: uma mulher, incomodada com o barulho de uma criança, lançou spray de pimenta dentro da igreja. A violência atingiu a criança, seus pais e diversos fieis, interrompendo a celebração em meio ao caos.
Mais do que um episódio isolado, o ocorrido revela uma face sombria de nosso tempo: a crescente intolerância diante da presença do outro, especialmente quando esse outro é pequeno, frágil e barulhento.
Esse tipo de atitude não surge de forma espontânea. Ela se enraíza em um contexto social marcado pelo individualismo, pela impaciência e pela perda do senso de comunidade.
A sociologia, como sempre, explica.
O sociólogo Zygmunt Bauman descreveu a sociedade contemporânea como líquida, onde os vínculos se desfazem com facilidade, e a convivência, que exige escuta, empatia e renúncia, se torna cada vez mais rara. O outro deixa de ser companheiro de jornada e passa a ser visto como obstáculo, ruído, interferência.
Nesse cenário, a infância se torna incômoda. Crianças só são bem-vindas em espaços públicos se estiverem caladas, imóveis, adaptadas a um ideal adulto de ordem e controle. Um gesto espontâneo, um choro, uma inquietação natural para quem está em processo de desenvolvimento, é suficiente para gerar reações desproporcionais. O que antes era acolhido com um sorriso ou com tolerância, hoje provoca indignação ou agressão.
O estadunidense Christopher Lasch, em sua obra sobre a cultura do narcisismo, mostra como a sociedade contemporânea produz adultos pouco dispostos a lidar com frustrações cotidianas. Quando tudo gira em torno de si mesmo, qualquer interferência externa se transforma em ataque. O culto religioso, que deveria ser espaço de comunhão e partilha, é interpretado como espetáculo intocável, onde qualquer desvio é visto como ofensa pessoal.
Não há neutralidade nessa postura, mas uma forma sutil e perigosa de desumanização. Ver na criança um problema, uma ameaça à ordem, é negar sua dignidade e sua humanidade. E quando isso ocorre dentro de um templo, um lugar que simboliza acolhimento e misericórdia, a contradição se torna ainda mais grave.
Que tipo de espiritualidade estamos cultivando se não há espaço para o choro de uma criança?
Que tipo de fé estamos vivendo se o mínimo incômodo nos faz perder o controle?
A resposta para esse estado de coisas não está em mais vigilância ou em soluções imediatistas. Ela exige uma mudança profunda de mentalidade. Precisamos reaprender a conviver. Retomar o valor do coletivo. Redescobrir a beleza da presença do outro, especialmente daqueles que mais exigem de nós paciência e atenção. Crianças em uma igreja não são interferência. São sinal de vida. São promessa de futuro.
Como dizia Bauman, viver com os outros dá trabalho. Mas viver sem eles é inumano. O que vimos em Jundiaí é o retrato de uma sociedade que esqueceu como viver junto.
Por isso, talvez a tarefa mais urgente de nosso tempo seja esta: reconstruir, passo a passo, o caminho da convivência.
E isso começa com os mais pequenos.
Samuel Vidilli é cientista social (svidilli@gmail.com)