OPINIÃO

A (in)eficácia da recuperação judicial do produtor rural

Por Guilherme Del Bianco e Carlos Eduardo Silva Jr. | Especial para a Sampi
| Tempo de leitura: 12 min
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O presente artigo tem por objetivo analisar a potencial ineficácia da recuperação judicial do produtor rural, considerando as recentes alterações legislativas e entendimentos jurisprudenciais sobre o tema. A análise será desenvolvida abordando os aspectos conceituais da recuperação judicial, sua aplicabilidade ao produtor rural e, principalmente, a classificação dos créditos concursais e extraconcursais, elemento central para compreender a eficácia limitada deste instituto para o setor agropecuário.

A relevância do tema é inquestionável, considerando a importância do agronegócio para a economia brasileira e o crescente número de pedidos de recuperação judicial por produtores rurais. Segundo dados do Serasa Experian, em 2023, o número de recuperações judiciais requeridas por produtores rurais pessoas físicas foi de 127, representando um crescimento de 535% em comparação ao ano anterior. Este aumento expressivo demonstra tanto a crise enfrentada pelo setor quanto a busca por soluções jurídicas para a reestruturação das atividades.

Contudo, apesar das recentes alterações legislativas que buscaram facilitar o acesso do produtor rural ao instituto da recuperação judicial, diversos obstáculos permanecem, especialmente no que tange à classificação dos créditos e à exclusão de determinadas obrigações do procedimento recuperacional, o que pode comprometer significativamente a eficácia do instituto para este segmento econômico.

1. O QUE É E COMO FUNCIONA UMA RECUPERAÇÃO JUDICIAL?

A recuperação judicial é um instituto jurídico previsto na Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência - LRF), que tem por objetivo viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, permitindo a manutenção da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos credores, promovendo a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

O artigo 47 da referida lei estabelece expressamente esta finalidade: "A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

Trata-se de uma evolução do antigo instituto da concordata, previsto no revogado Decreto-Lei nº 7.661/1945, que se mostrava ineficiente para a recuperação efetiva das empresas em crise. A recuperação judicial representa uma mudança de paradigma, pois deixa de focar apenas na satisfação dos credores para buscar a preservação da atividade econômica viável, reconhecendo sua importância social e econômica.

O procedimento recuperacional permite ao devedor apresentar um plano de reestruturação de suas dívidas, que será submetido à aprovação dos credores em assembleia. Uma vez aprovado o plano e homologado pelo juiz, as dívidas anteriores ao pedido de recuperação são novadas, passando a seguir as condições estabelecidas no plano aprovado.
Para requerer a recuperação judicial, o devedor deve atender aos requisitos estabelecidos no artigo 48 da Lei 11.101/2005, dentre os quais se destacam: exercer regularmente suas atividades há mais de dois anos; não ser falido ou, se foi, ter suas responsabilidades declaradas extintas por sentença transitada em julgado; não ter obtido concessão de recuperação judicial há menos de cinco anos; e não ter sido condenado por crime falimentar.

A Lei nº 14.112/2020 trouxe importantes alterações à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, buscando aprimorar o instituto e torná-lo mais eficiente. Entre as principais mudanças, destacam-se: a possibilidade de financiamento do devedor durante a recuperação judicial (DIP financing); a regulamentação da insolvência transnacional; a criação de regras específicas para micro e pequenas empresas; e, especialmente relevante para o presente artigo, disposições específicas sobre a recuperação judicial do produtor rural.

2. A RECUPERAÇÃO JUDICIAL PODE SER UTILIZADA PARA PRODUTORES RURAIS?

A possibilidade de utilização da recuperação judicial por produtores rurais foi objeto de intensos debates doutrinários e jurisprudenciais ao longo dos anos. Isso porque a Lei 11.101/2005, em sua redação original, estabelecia que o instituto era aplicável apenas ao empresário e à sociedade empresária, conforme seu artigo 1º.

O Código Civil brasileiro, por sua vez, estabelece em seu artigo 966 que "considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços". No entanto, o artigo 971 do mesmo diploma legal faculta ao produtor rural a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, não a tornando obrigatória para o exercício de sua atividade.

Esta peculiaridade gerou controvérsias sobre a possibilidade de o produtor rural não inscrito na Junta Comercial utilizar-se do instituto da recuperação judicial. A questão central residia em determinar se o produtor rural não registrado poderia ser considerado empresário para fins de recuperação judicial e, em caso positivo, se poderia comprovar o exercício regular da atividade por mais de dois anos sem o registro.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou a questão em diversos julgados, culminando na fixação da tese no Tema 1.145, julgado sob o rito dos recursos repetitivos. Conforme decisão da Segunda Seção do STJ, "ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento do pedido, independentemente do tempo do registro".

Este entendimento foi posteriormente incorporado à legislação pela Lei nº 14.112/2020, que acrescentou os §§ 2º a 5º ao artigo 48 da Lei 11.101/2005, estabelecendo expressamente que:

"§ 2º No caso de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ) que tenha sido entregue tempestivamente.

§ 3º Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente.

§ 4º Para efeito do disposto no § 3º deste artigo, no que diz respeito ao período em que não for exigível a entrega do LCDPR, admitir-se-á a entrega do livro-caixa utilizado para a elaboração da DIRPF.

§ 5º Para os fins de atendimento ao disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo, as informações contábeis relativas a receitas, a bens, a despesas, a custos e a dívidas deverão estar organizadas de acordo com a legislação comercial e com o inciso IV do caput do art. 51 desta Lei."

Além disso, a Lei 14.112/2020 também incluiu o artigo 70-A na Lei 11.101/2005, permitindo expressamente que o produtor rural pessoa física utilize o plano especial de recuperação judicial, anteriormente restrito às microempresas e empresas de pequeno porte.
Portanto, atualmente, é pacífico o entendimento de que o produtor rural pode utilizar-se da recuperação judicial, desde que atendidos os seguintes requisitos:

  • Exercício da atividade rural de forma empresarial por mais de dois anos;
  • Inscrição na Junta Comercial no momento do pedido de recuperação judicial;
  • Comprovação do período de exercício da atividade por meio da documentação contábil e fiscal adequada.

No entanto, apesar da aparente solução legislativa e jurisprudencial para a questão do acesso do produtor rural à recuperação judicial, persistem problemas significativos quanto à eficácia do instituto para este segmento, especialmente no que se refere à classificação dos créditos sujeitos ao procedimento recuperacional, como será analisado a seguir.

3. QUAIS CRÉDITOS SÃO CONCURSAIS E EXTRACONCURSAIS DENTRO DE UMA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DO PRODUTOR RURAL?

A eficácia da recuperação judicial está diretamente relacionada à abrangência dos créditos sujeitos ao procedimento. Quanto maior o número de credores e créditos submetidos ao plano de recuperação, maiores as chances de reestruturação bem-sucedida da atividade econômica.

A Lei 11.101/2005 estabelece, como regra geral, que estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos (art. 49, caput). No entanto, a própria lei estabelece exceções a esta regra, excluindo determinados créditos do procedimento recuperacional, os chamados créditos extraconcursais.

No caso específico do produtor rural, a questão dos créditos extraconcursais ganha contornos ainda mais complexos, em razão das particularidades do financiamento da atividade agropecuária e das recentes alterações legislativas que ampliaram significativamente o rol de créditos não sujeitos à recuperação judicial deste segmento.

3.1. Créditos de Cooperativas e Cooperados

Uma das questões mais relevantes para a análise da eficácia da recuperação judicial do produtor rural diz respeito aos créditos decorrentes de operações entre cooperativas e seus cooperados. Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão unânime, definiu que créditos decorrentes de contratos firmados entre cooperativas de crédito e seus associados constituem atos cooperativos e, por isso, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial.

Conforme noticiado pelo portal Migalhas, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator dos Recursos Especiais 2.091.441 e 2.110.361, destacou em seu voto que "o ato de concessão de crédito realizado entre a cooperativa de crédito e seu associado está dentro dos objetivos sociais da cooperativa, devendo ser considerado como ato cooperativo e, portanto, não sujeito aos efeitos da recuperação judicial".

Esta interpretação foi reforçada pela reforma de 2020 (Lei 14.112), que inseriu o §13 no art. 6º da Lei 11.101/05, excluindo expressamente os atos cooperativos dos efeitos da recuperação judicial. Trata-se de uma limitação significativa à eficácia do instituto para o produtor rural, considerando a relevância das cooperativas no financiamento e na comercialização da produção agropecuária.

3.2. Cédulas de Produto Rural (CPRs)

Outro ponto crucial para a análise da eficácia da recuperação judicial do produtor rural diz respeito às Cédulas de Produto Rural (CPRs), instrumento amplamente utilizado para o financiamento da atividade agropecuária.

A Lei 14.112/2020 alterou o artigo 11 da Lei 8.929/94 (que regula as CPRs), estabelecendo que "a CPR com liquidação física, bem como os direitos dela decorrentes, não será considerada como ativo permanente do emitente e não poderá ser objeto de penhora, sequestro ou arresto para garantia de dívida de natureza diversa contraída pelo emitente".

Esta alteração, combinada com o §13 do art. 6º da Lei 11.101/05, tem sido interpretada no sentido de que as CPRs com liquidação física não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do produtor rural. Trata-se de mais uma limitação significativa à eficácia do instituto, considerando a ampla utilização deste instrumento no financiamento da atividade agropecuária.

3.3. Créditos com Garantia Fiduciária

A Lei 11.101/2005 estabelece, em seu artigo 49, §3º, que não se submetem aos efeitos da recuperação judicial os créditos garantidos por alienação fiduciária de bens móveis ou imóveis. Esta exclusão, que já representava um obstáculo significativo para a recuperação de empresas em geral, ganha contornos ainda mais dramáticos no caso do produtor rural.

Isso porque grande parte do financiamento da atividade agropecuária é realizada por meio de contratos com garantia fiduciária, seja de máquinas e implementos agrícolas, seja da própria produção ou mesmo de imóveis rurais. Logo, verifica-se que a exclusão destes créditos do procedimento recuperacional reduz drasticamente a eficácia do instituto para o produtor rural.

3.4. Créditos para Aquisição de Propriedades Rurais

Outro aspecto relevante para a análise da eficácia da recuperação judicial do produtor rural diz respeito aos créditos destinados à aquisição de propriedades rurais. Estes créditos, em geral, são garantidos por alienação fiduciária do próprio imóvel, o que os exclui do procedimento recuperacional, conforme já mencionado.

Além disso, mesmo nos casos em que a garantia é hipotecária (e não fiduciária), a jurisprudência tem entendido que a essencialidade do bem para a atividade produtiva não impede a execução da garantia, especialmente quando se trata de imóvel rural não utilizado diretamente na produção.

Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que a recuperação judicial de produtores rurais não impede a execução de garantias pessoais prestadas como aval. No caso julgado, os devedores, embora produtores rurais, assumiram a obrigação pessoalmente, por meio de aval em benefício de outra empresa do grupo. A decisão do TJ/SP reconheceu a autonomia da garantia pessoal e firmou entendimento de que tais obrigações extraconcursais continuam plenamente exigíveis, mesmo diante da recuperação judicial.

Esta decisão reforça a interpretação restritiva que os tribunais têm dado à abrangência da recuperação judicial do produtor rural, limitando ainda mais a eficácia do instituto para este segmento.

4. CONCLUSÃO

A análise desenvolvida ao longo deste artigo permite concluir que, apesar das recentes alterações legislativas e jurisprudenciais que buscaram facilitar o acesso do produtor rural ao instituto da recuperação judicial, persistem obstáculos significativos à eficácia deste instrumento para o setor agropecuário.

A principal limitação reside na exclusão de uma parcela expressiva dos créditos do produtor rural do procedimento recuperacional, especialmente:

  • Créditos decorrentes de contratos firmados entre cooperativas de crédito e seus associados, considerados atos cooperativos e, portanto, extraconcursais;
  • Créditos garantidos por Cédulas de Produto Rural (CPRs) com liquidação física, que representam uma parcela significativa do financiamento da atividade agropecuária;
  • Créditos garantidos por alienação fiduciária de bens móveis ou imóveis, modalidade amplamente utilizada pelas instituições financeiras no financiamento do agronegócio;
  • Créditos para aquisição de propriedades rurais, geralmente garantidos por alienação fiduciária do próprio imóvel.

A exclusão destes créditos do procedimento recuperacional reduz drasticamente a eficácia do instituto para o produtor rural, uma vez que limita a abrangência do plano de recuperação e, consequentemente, as possibilidades de reestruturação da atividade econômica.

Além disso, a jurisprudência tem adotado uma interpretação restritiva quanto à abrangência da recuperação judicial do produtor rural, como demonstra a recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu que a recuperação judicial não impede a execução de garantias pessoais prestadas como aval.

Diante deste cenário, é possível afirmar que a recuperação judicial, tal como atualmente regulamentada e interpretada pelos tribunais, apresenta eficácia limitada para o produtor rural, não atendendo plenamente ao objetivo de viabilizar a superação da crise econômico-financeira e permitir a manutenção da atividade produtiva.

Para que o instituto possa cumprir efetivamente sua função no setor agropecuário, seria necessária uma revisão legislativa que ampliasse a abrangência dos créditos sujeitos ao procedimento recuperacional, especialmente no que se refere aos créditos garantidos por CPRs e aos créditos decorrentes de atos cooperativos.

Enquanto tais alterações não ocorrem, o produtor rural deve avaliar cuidadosamente a viabilidade da recuperação judicial em seu caso específico, considerando a composição de seu endividamento e a proporção de créditos que efetivamente estariam sujeitos ao procedimento recuperacional.

Guilherme Del Bianco de Oliveira é advogado, possui graduação pela Faculdade de Direito de Franca e Pós-graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, Gestão Jurídica da Empresa pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho e Negociação Estratégica pelo Instituto de Pesquisa INSPER. Atualmente é Sócio-Diretor do Moisés, Volpe e Del Bianco Advogados, escritório fundado há mais de 20 anos e com atuação especializada nas demandas de empresários e produtores rurais.

Carlos Eduardo Silva Jr. é advogado, possui graduação pela Faculdade de Direito de Franca e Pós-graduação em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito de Coimbra/PT e no LLM de Direito Corporativo com ênfase em Sociedades Anônimas pelo IBMEC. Sócio do escritório de advocacia Moisés, Volpe e Del Bianco Advogados.

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