OPINIÃO

As anedotas de Machado


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Um mês depois da morte de Machado de Assis, José Veríssimo comentou no “Jornal de Comércio” uma das características do “bruxo do Cosme Velho”. Para ele, Machado “era verdadeiramente guloso de histórias, anedotas, casos que trouxessem algum interesse psicológico, literário ou estético. A sua imaginação de poeta deleitava-se em idealizá-los, ampliá-los, tirar-lhes uma sensação ou a filosofia que pudessem conter”.

Atento observador da mente humana, um psicólogo das almas capaz de perscrutar, com seu admirável tino, os íntimos recônditos da individualidade, ele não se limitava, em relação às “anedotas”, “a ouvi-las com regulado encanto, senão que também se comprazia em contá-las. E contá-las com habilidade e arte”. Tanto que, ao replicar o que ouvira e achara interessante, ele o fazia “com imensa verve, tirando efeitos de graça de sua própria gaguez”.

Tudo isso está na obra machadiana: no romance, no conto, na crônica, esse talento e pendor do anedótico é um reflexo inquestionável. Sabia, como ninguém, exercitar a pena da galhofa e a se servir da tinta da melancolia.

É mister advertir que “anedota”, não é a piada, o toque de humor com que esse verbete hoje se identifica na linguagem correntia. Anedota, para os literatos, é aquela tirada sedutora, fruto de imaginação copiosa, que, no dizer de Aristóteles, fazia a poesia ser mais verdadeira do que a história.

Daí encontrar-se com frequência a anedota nos diálogos de Platão e nos discursos de Demóstenes, nas comédias de Plauto e nas cartas de Cícero, como observa Josué Montello, no texto “Em defesa da anedota”, com que inicia o seu saboroso “Pequeno Anedotário da Academia Brasileira”.

A anedota servia como elemento moralizante, ao “descrever as virtudes e os vícios dos homens em forma de exemplos”. São breves narrativas que servem para enfatizar qualidades humanas e isso nasceu desde que a linguagem passou a ser escrita, atravessou a Antiguidade e floresceu na Idade Média.

Para Josué Montello, “o século XVIII, na França, é o século de ouro da anedota. Dir-se-ia que as memórias, os diários, as correspondências epistolares, as gazetas de escândalo, que então se multiplicam, não têm outra finalidade. As anedotas históricas cruzam-se com as anedotas galantes. Tudo é pretexto para a frase de espírito. Nunca se mexericou tanto como nesse período. Tem-se mesmo a impressão de que os lindos leques finalmente trabalhados que se exibem em Versalhes haviam sido feitos para que, por trás deles, se escondesse o riso suscitado pela última anedota da Corte”.

Por isso é que a obra de Machado de Assis encanta quem a ela se entrega com real empenho. A elegância com que descreve situações, a ironia sutil, o bom gosto, fazem muita falta às mensagens hoje veiculadas nas redes sociais. A maior parte delas, a conter palavras chulas, abuso do “non sense”, algo que em nada se acrescenta ao patrimônio cultural do destinatário.

Quando será que aquela maior parte dos reféns do mundo web se converterá à inescapável realidade de que a linguagem é uma arte que faz o cérebro se exercitar e que a economia no vernáculo, a praxe das onomatopeias e o exclusivo uso de interjeições reduz a humanidade a um conjunto inexpressivo de animais que parecem fugir à racionalidade?

José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)  

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