OPINIÃO

'Salve Silva!', roteiro de uma tragédia (Parte 1)


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"Atenção: Esse é um conto de ficção em quatro partes escrito por mim, Felipe Schadt. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência."
...

Em um acampamento de manifestantes bolsonaristas qualquer, em frente a um quartel mais qualquer ainda, logo após o resultado das eleições de 2022, dois homens compartilhavam um celular. Estavam assistindo um jovem, porém famoso, podcaster.
 
"No fim das contas, Hitler nem era tão ruim assim. Porque, se liga, na economia ele tirou a Alemanha do buraco, gerou emprego e tudo mais. Será mesmo que ele era o vilão da história ou eram os judeus que queriam implantar uma ditadura judia no país? Não sei... eu tenho minhas dúvidas sobre essa história que nos contaram sobre o nazismo. Será que morreu mesmo esse monte de judeu?..."
 
- Vou compartilhar isso no grupo da família - disse o primeiro homem.
- Manda pra mim também - respondeu o segundo.
- Vocês viram o vídeo falando sobre o nazismo? - apareceu um terceiro. - Eu sempre tive minhas dúvidas sobre isso, sério.
- Muita coisa que nos contaram na escola é mentira, cara. Não dá pra confiar nos professores não. Tudo esquerdista - respondeu o primeiro.
- Mas viu... Deixa eu falar uma coisa pra vocês animadora. Acabei de ver um vídeo que o cara estava explicando que na Alemanha, o Hitler perdeu as eleições e tal. Só que a pressão popular por ele foi tão grande, que obrigou o cara que ganhou a chamar ele para ser primeiro-ministro - voltou a dizer o homem que chegou por último. - Se funcionou lá, pode funcionar aqui. Imagina o Bolsonaro assumir como, sei lá, o "Primeiro Deputado"? Assim ele teria poder para comandar a câmara e impedir o Lula de governar.
- Seria lindo - disse o primeiro homem.
- Selva!! - gritou o segundo fazendo todos em volta gritar e aplaudir, mesmo sem saber o porquê gritavam e aplaudiam.
- Não vai funcionar... - disse um homem sentado numa cadeira de praia com uma lata de cerveja na mão.
- Como não vai funcionar? Nosso Mito vai...
- Esquece o Bolsonaro! - interrompeu o homem sentado. - Ele é carta fora do baralho. Abandonou a gente. É só mais um vendido para o sistema. Se a gente quiser salvar o Brasil, vai ter que ser por nossa conta.
 
À medida que ia falando, mais gente se juntava para ouvir. Ele dizia coisas como "isso é culpa dos esquerdistas" e "temos que eliminar eles da nação para o país prosperar". A cada frase proferida, um silencioso concordar de cabeças era feito entre as dezenas de pessoas que já estavam em volta dele e de sua cadeira de praia.
 
- Precisamos ter coragem de assumir o país. Começar reunindo patriotas de coragem para enfrentar a repressão que será jogada em cima de nós. Aqueles que não podem lutar na rua, devem lutar na internet, compartilhando nossas manifestações, informações contra o inimigo e divulgação da nossa causa. Boicotes a tudo que for proveniente da esquerda deve ser urgente! Precisamos fazer a esquerda sangrar. E se perguntarem o porquê queremos isso, devemos responder o óbvio: "Os esquerdistas tomaram nossa pátria de assalto e vão destruir tudo como gafanhotos se não fizermos nada". Eles afundaram nossa nação na lama. Nessa lama moral que suja nossa história gloriosa - continuou, de maneira mais inflamada. - A meta final e inabalável deve ser a remoção dos esquerdistas por completo!
 
Um urro de homens e mulheres tomou conta de todo acampamento. Uma mulher que estava filmando todo o discurso perguntou para um homem do seu lado qual era o nome do moço que discursava, para ela marcar nas redes sociais. O homem também não sabia, mas gritou perguntando.
 
- Patriota! Ei, patriota! Qual é o seu nome?
 
Todos ficaram em silêncio. Então ele respondeu:
 
- Meu nome é Silva!
 
Dessa vez os gritos eram de "Salve Silva!" Alguns gritavam "Selva!". E outros assobiavam silvos agudos e estridentes. Era uma cacofonia de dar medo.

... [Continua na próxima coluna]

Conhecimento é conquista.

Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)

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