OPINIÃO

Memórias de Marta


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Um romance comovente. Esse único adjetivo resume o livro de Júlia Lopes de Almeida (1862/1934) e revela uma das faces dessa obra do final do século 19 e que tanto diz do Brasil daquele tempo e deste em que vivemos. Primeira narrativa de fôlego da autora, “Memórias de Marta” chega ao público em 1889. São duas Martas, mãe e filha, vivendo no Rio de Janeiro, então capital do império. A Marta filha é quem conta a história. Mulher na casa dos seus trinta anos, relembra a trajetória penosa cumprida pela mãe para que a filha estudasse e tivesse uma vida menos áspera e mais digna do que a dela. Viúva, a Marta mãe sofreu não só com a perda do marido, mas com a forçada mudança de classe social. De família da então nascente classe média, casada com pequeno comerciante, a Marta mãe deixa a aconchegante casa em que residia para dividir cômodo apertado num cortiço. “Custou-lhe afazer-se aos maus-tratos da miséria”, observa a filha. Da antiga casa, a narradora rememora o pé de casuarina, companheira da infância da menina filha única. 

De compleição frágil, magrinha, pálida, a Marta filha é atormentada pelas crianças vizinhas daquele pardieiro em que a privacidade não é moeda corrente. Sobram bisbilhotices, maledicências e toda sorte de intromissões. Todo mundo sabe de todo mundo. E não só. As condições insalubres, de moradias exíguas, sem ventilação nem luminosidade adequadas, são propícias para variado espectro de doenças. Sobram penúria e padecimentos. Mas no meio de tanta privação aparece a – ainda que rara -- solidariedade. 

No cortiço há histórias de violência doméstica, de humilhações diárias, de trabalho extenuante e mesmo de embriaguez infantil. Para sustentar a casa, a mãe lava e passa roupa para fora. Empenhada para que a filha consiga independência e trilhe outros caminhos, a mãe consegue matriculá-la numa escola. Introspectiva, tímida demais, a convivência com outras garotas da mesma idade não é dos melhores exercícios para a Marta filha. Mas a educação formal passa a ser um refúgio. O zelo e o carinho de professora atenta e responsável são fundamentais para o desenvolvimento da garota. 
Brotam as primeiras paqueras e também a primeira desilusão amorosa. As impertinências da filha e o posterior reconhecimento de tudo que a mãe fez por ela também aparecem. Essas Martas entram no seleto panteão de grandes personagens femininas da literatura brasileira.  
 
Júlia Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, teve educação esmerada e o incentivo familiar para dedicar-se à literatura. Foi ativista dos direitos femininos e defendia uma educação emancipadora para as mulheres. Casada com o poeta e jornalista Filinto de Almeida, a dupla agitou a cena cultural carioca. Em sua casa no Rio foi discutida a criação da Academia Brasileira de Letras (ABL), na década de 1890. Júlia ficou de fora do primeiro grupo de acadêmicos, pois a ABL seguiu o modelo francês, em que somente homens eram eleitos (a primeira “imortal”, Rachel de Queiroz, só ingressa na década de 1970). A escritora deixou obra variada, composta por romances, peças teatrais, contos e ensaios.  

Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)

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