Eu tinha acabado de chegar da escola e estava com o estômago colado nas costas. Eu sabia que havia na geladeira salada lavada, queijo e dois ovos. O menu seria salada com ovo frito recheado com queijo, uma especialidade da casa.
Com a mão direita quebrei o primeiro ovo e, claro, com a mão esquerda, ajudei a abrí-lo com muita dificuldade. O golpe nunca é limpo e sempre cai uma lasca de casca na frigideira. Normal para os meus padrões. Mas com o segundo ovo foi diferente. Realizei a manobra gastronômica mais legal de todas: quebrei um ovo com apenas uma das mãos.
Eu nunca fui habilidoso na cozinha. Para falar a verdade, eu sou um desastre pilotando um fogão. Quando me perguntam se sei cozinhar, a resposta padrão é: "Eu malemá sei fazer gelo, meu cumpadi". Esconder minha inabilidade no humor é meu refúgio. Claro que é um exagero. Não morreria de fome se tivesse o básico para cozinhar.
Desde pequeno nunca precisei "ir para cozinha". Minha mãe sempre reinou absoluta nesse canto da residência. Clássica dona de casa, minha mãe sabia fazer tudo. Seus pratos eram simples, mas ela sabia fazer bem o feijão com arroz. Aliás, feijão de mãe é imbatível. Eu só tinha permissão para "ajudá-la" na cozinha, aliás, na hora de escolher feijão.
Minha mãe tratava a cozinha como o seu território. Penso que ela sentia que ali era o único espaço da nossa pequena casa de sala, quarto e cozinha que era seu reino. A cozinha pertencia a ela e isso conferia a ela um poder que gostava de exercer.
A minha primeira imagem de "cozinha" que tenho em mente, no entanto, é do meu pai fazendo massa para pizza. Ele é, inclusive, um cozinheiro tão bom quanto a minha mãe e quando eu era bem pequeno, cansei de ver ele pilotando o fogão. Eu amava quando ele fazia suspiro. Mas meu pai se afastou do reino culinário da minha mãe por causa do seu trabalho no contraturno - trabalhava de noite e descansava de dia - e eu só o veria novamente na frente de um fogão muitos anos mais tarde para preparar os almoços de dias comemorativos.
Assim como meu pai, eu não tinha vez na cozinha e por isso - acho - nunca me interessei em cozinhar. O fato é que eu tinha quem o fizesse por mim e minha mãe cumpria esse papel muito bem. Fato esse que me fez lembrar de Talcott Parsons.
Parsons foi um sociólogo norte-americano que viveu no século XX e se gabava por ter uma "Teoria Geral Social". Ele acreditava que os sistemas sociais, ou seja, os indivíduos, grupos e instituições, precisam buscar maneiras de se manter funcionando para que a sociedade como um todo se mantenha de pé e equilibrada.
Ele ficou bem famoso ao indicar que existe um modelo "ideal" de família: pai, mãe e filhos. Para ele, a família é o primeiro grupo social no qual um indivíduo faz parte e, portanto, é ali que ele tem os primeiros contatos e aprende os primeiros comportamentos sociais. Segundo Parsons, a família é fundamental para manter a sociedade funcionando.
O pai tem que cumprir o seu papel de provedor da família e a mãe a da cuidadora do lar, logo, os filhos aprenderão, a depender do seu gênero, qual papel deverá assumir na vida adulta. Veja, as crianças são treinadas desde cedo a ter um papel na sociedade: meninos brincam de trabalhar fora, meninas brincam de cuidar da casa.
Na lógica de Parsons, que convenhamos é - e se não é, deveria ser - superada e ultrapassada, minha mãe fez certo ao não me deixar cozinhar. Parsons, inclusive, condenaria meu pai por pilotar o fogão em seus momentos na cozinha. Aliás, o homem só estaria autorizado a cozinhar se essa fosse a sua profissão. Cozinhar para cuidar dos filhos é, segundo o sociólogo norte-americano, coisa de mulher.
Eu não sei cozinhar. Mas sempre quis aprender. Não culpo a minha mãe por não ter me ensinado, afinal, para ela e para o que foi lhe ensinado, ela estava fazendo o certo e cumprindo o seu papel. Mas sinto te decepcionar, Parsons, um dos meus maiores objetivos de vida era poder quebrar um ovo com uma mão só, exatamente como minha mãe fazia às vezes.
Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)