Era tarde da noite de uma segunda-feira aparentemente ordinária. Eu havia chegado do trabalho e estava bem cansado do dia que começou às 9h da manhã com as aulas no colégio e só terminou às 22h com as aulas na faculdade. Mas mesmo cansado, eu fui fiel ao meu hábito de ler antes de dormir.
O livro era pesado. Não seu volume físico, mas seu conteúdo denso. Li algo próximo de três páginas e meus olhos já davam sinais de que não ficariam abertos por muito tempo. Deixei o livro de lado e resolvi me render a outro hábito - esse do qual não me orgulho muito -, o de ficar rolando o feed em busca de nada.
“Policial jogou um homem de uma ponte!”, era o que dizia o comentário acompanhado de um vídeo em uma rede social. Não quis assistir, mas comecei a procurar mais informações a respeito. Um cidadão que conheceu o bom lema não-institucional dado à Polícia Militar “bate primeiro, pergunta depois”. As notícias eram pesadas. Deixei o celular de lado, próximo ao livro que eu abandonara minutos antes. O livro em questão era o aclamado “Rota 66: a história da polícia que mata”.
Dessas coincidências da vida, estar relendo o best-seller de Caco Barcellos no instante em que uma explosão de casos de violência policial vêm à tona, não era uma da qual eu gostaria de estar contemplando. Lançado em 1992, “Rota 66” conta as histórias de violência da Polícia Militar de São Paulo, mais especificamente do 1º Batalhão de Choque e suas Rondas Ostensivas Tobias Aguiar.
O livro-reportagem mostra com detalhes como a Rota se tornou um sinônimo de terror e impunidade na capital paulista. Caco Barcellos dedicou sete anos investigando os policiais matadores da PM, suas vítimas, seus modus operandi e toda a impunidade vinda do alto escalão e o medo imputado às testemunhas que mantiveram muitos policiais assassinando centenas de inocentes por décadas.
Mais de 30 anos depois do seu lançamento, a situação não parece ter mudado muito. Só em 2023, mais de 4 mil pessoas foram mortas pela polícia, dessas 510 só no estado de São Paulo é o que aponta dados levantados pela Rede de Observatórios da Segurança, divulgado em novembro deste ano pelo portal G1. A pesquisa ainda mostra que a maioria das vítimas eram jovens negros de periferia, o mesmo padrão das décadas de 70 e 80 registrado no livro.
A triste coincidência termina nisso. Diferente dos casos relatados no “Rota 66”, a impunidade não é mais um grande fator da equação. Só em novembro de 2024, 45 PMs foram presos em São Paulo, isso porque, mortes cometidas por policiais militares do estado paulista registraram um aumento de 98% no governo Tarcísio de Freitas.
A diferença hoje está no complexo de “vigiar e punir” que saiu da exclusiva esfera das autoridades policiais e passou a ser exercida por cada uma das pessoas que possuem um aparelho celular nas mãos. Se antes a impunidade prevalecia graças à obscuridade dos atos dos matadores, hoje eles viram notícia no exato momento que acontecem.
Some-se a isso as câmeras corporais utilizadas pelos policiais militares de São Paulo desde 2020, que impedem - ou deveriam impedir - qualquer desvio de conduta dos PMs nas abordagens e nas rondas. Lembre-se que foi uma dessas que mostrou um policial destruindo uma viatura após praticar um “racha” nas ruas da Zona Sul da capital paulista. Ontem mesmo (9), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, definiu que é obrigatório o uso de câmeras corporais por policiais militares de São Paulo durante operações.
Filosoficamente falando, as câmeras inibem os abusos de violência policial porque elas causam o medo da represália. Mas não deveria ser assim. A conduta policial deveria ser certa com ou sem câmera vigiando - chame isso de moral se quiser. Porém, alguns policiais não têm tempo para filosofia, fazendo do “Rota 66” um livro de atualidades 32 anos depois do seu lançamento.
Isso tudo abre precedentes para o seguinte debate: os casos de violência policial não se tratam de “casos isolados”. Essa é a bola - muito pertinente, diga-se de passagem - que está sendo levantada por aqueles que defendem o fim da militarização da polícia. Mas isso é tema para outro texto.
Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)