OPINIÃO

Não ao “Suje-se gordo!”. Ou então seremos todos “Lopes”


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O maior escritor brasileiro, Machado de Assis, tem uma crônica, “Suje-se gordo!”, na qual lança suas ironias sobre a Justiça e seus processos de julgamento. Nela, Machado conta sua participação em dois tribunais de júri. No primeiro condena-se um rapaz pobre por um crime de pouca monta e, no segundo, absolve-se um outro que cometeu um roubo de grande valor. 

O detalhe machadiano é que no primeiro caso, o jurado mais enfático pela condenação do réu, chamado Lopes, zomba do acusado por ter sido inábil em seu intento, pois as provas não davam margem às dúvidas e o próprio julgado admitiu seu crime. E criticou-o por ter se sujado por tão pouco. Daí o “suje-se gordo”. Se é para “sujar-se” com a lei e perder a honra que seja por um crime de alto relevo, não por ninharias. 

No segundo julgamento que participou, o narrador conta que no banco dos réus estava justamente o Lopes – agora como julgado -, com aparência tranquila, certo de sua absolvição, o que, de fato, aconteceu: Inocentado, e por boa margem de votos favoráveis à sua soltura. 

Pois bem, o resumo da ópera (ou do texto), coloca em questão os pesos e medidas dos homens ao julgar os crimes, tanto pela sua gravidade, quanto por quem os pratica. Lopes, portanto, previa que seria inocentado. Não pelas provas ou ausência delas. As provas contra Lopes eram também robustas. 

A convicção de Lopes diante do júri residia em dois pontos: ser uma pessoa “distinta” e ter tido a coragem de “sujar-se gordo”, por muito. O crime compensaria desde que considerada a situação do autor e o montante do roubo. 

É no mesmo cenário machadiano que surge o projeto de lei nº 620, em tramitação na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), apresentado por um deputado do Partido Liberal (PL). Pelo projeto, seriam anistiados os proprietários e produtores rurais de multas, autuações e qualquer outro tipo de penalidade aplicadas por órgãos estaduais, decorrentes de incêndios em agosto de 2024. Trata-se de uma espécie de “passar a boiada” das vistas grossas para um dos maiores crimes ambientais do estado de São Paulo nos últimos tempos e que continua ocorrendo. 

Em agosto, e neste início de setembro, São Paulo assistiu um dos maiores desastres ambientais da sua história, com a proliferação de queimadas em grande parte de seu território. Em razão das secas, milhares de focos de incêndio surgiram e devastaram áreas agrícolas paulistas. 

É certo que vários focos das queimadas surgiram pela alta temperatura e estiagem. Mas, é verdade também que inúmeros outros incêndios foram criminosos, movidos pela ganância e o senso de oportunidade de alguns agricultores para tirar vantagem da situação. Há registros que duas pessoas morreram em decorrência dos incêndios, 66 ficaram feridas, mais de 34 mil hectares de 14 regiões do Estado foram atingidas.

Houve o comprometimento de casas, plantações, comércios, bloqueios totais ou parciais de rodovias, restrição das atividades em aeroportos e destruição da fauna e da flora, entre outros danos. 

A polícia prendeu sete suspeitos por atiçar fogo nas plantações e demais áreas verdes. Nenhum deles proprietários de áreas rurais de relevo, mas agentes a mando de alguém. E agora, surge tão estranho pedido de anistia aos que forem responsabilizados pelas queimadas criminosas. 

Ora, qual o interesse em anistiar criminosos responsáveis por tamanha delinquência? O que está por trás da tentativa em “passar pano” para quem atentou contra pessoas, propriedades e meio ambiente?

Estamos novamente assistindo, desta vez na vida real, mais um julgamento como o de Lopes da crônica machadiana? Será que por terem “se sujado gordo”, os responsáveis pela destruição de boa parte do território paulista devem ter seus crimes anistiados? Afinal, se prevalecer o senso de impunidade do qual gozam os criminosos pertencentes à elite do país, nossos “Lopes”, mais uma vez, sairão sorridentes dos tribunais. 

Por isso, nosso gabinete repudia tal projeto. Alertamos a opinião pública por tal descalabro e queremos sensibilizar os colegas deputados a não seguirem o equivocado senso comum dos tribunais narrados por Machado. 

Não podemos deixar prevalecer o sentimento de impunidade na sociedade, seja para crimes de qualquer natureza. Mas que, principalmente, para aqueles que “sujam-se gordo” as responsabilidades e punições sejam promovidas na mesma monta. 

Afinal de contas, as mudanças climáticas estão aí, o aquecimento global é uma realidade e novos enfrentamentos semelhantes aos vividos neste mês de agosto surgirão. Dar carta branca aos “Lopes” de agora só irá sinalizar a impunidade para seus novos atos criminosos no futuro.

Maurici é deputado estadual (PT-SP)

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