São dois fatos recentes que escutei e me comovi através da Pastoral da Mulher/Magdala. A moça chegou à reunião com seu olhar embaçado de tantos dissabores. Não teve a infância preservada. Para alguns, naquela época e agora, corpo de mulher independe da idade. Se o entorno for precário, pode ser usado e abusado. Cresceu aos goles amargos do que a sua história lhe oferecia. Brincou e estudou pouco, foram diminutas as surpresas bonitas. Pelo menos o companheiro, que conheceu há anos, permanece com ela. Os goles das bebidas que ingerem também são ásperos, contudo nele sente proteção.
Explicou o calombo na cabeça. Apanhara da filha. Não gritou, com medo de que viesse alguém e machucasse a filha. Onde mora existe justiceiro que, se souber, danifica a agressora. Registrar um Boletim de Ocorrência muito menos. Tem certeza de que ela não queria fazer isso com a mãe. Aconteceu em um momento de embriaguez. Jamais faria mal a ela. Um momento de desequilíbrio como os dos tombos que levam ao descer o morro. Apesar de sua defesa, alguém denunciou e a filha permaneceu na cadeia até a audiência de custódia. Por não existir queixa formal, saiu logo. Ao chegar em casa, recusou-se a pedir desculpas, como sugeriram. Para ela sem problema algum: deve ter esquecido do que aconteceu. Teme que alguém das proximidades traga os justiceiros, que atravessam as vielas com pau nas mãos. Citou, um pouco depois, o Evangelho sobre a porta estreita: quer passar por ela com o marido e todos os filhos. Continuará a pedir a Deus que os faça da bondade.
A outra moça se encontra há alguns anos no Nordeste. Saiu da casa da tia para um rumo desconhecido, talvez no desejo de reencontrar a mãe que, nos seis anos dela, se fez da Eternidade, com a mesma doença que ela carrega, mas hoje tem como controlar com medicações. Não se acomodou na casa da tia, em outros lugares e nem mesmo na rua. O vazio da ausência materna deixou nela um buraco que tenta preencher com inúmeras coisas.
Foi um morador de rua, com quem se enrabichou, que a convenceu a irem para a terra dele. De carona em carona chegaram na praça de lá. Gostou da cidade e do povo. Enquanto ela dava à luz a primeira filha, ele à espera, assassinaram-no. Dívida não paga. Sem endereço, foi com a bebê para um abrigo. A tia, que é de alma doce, assumiu a menina. Ela não quis voltar. Existe na localidade algo místico que a detém. Esporadicamente, consegue alugar dois cômodos para residir. De quando em quando, fica pela rua com os conhecidos. A segunda filha mora com o pai da criança, que permite que a visite e lhe leve agrados. Conversa comigo através do Messenger.
Semana passada, contou à tia, através do WhatsApp, sobre uma amiga, da mesma idade, que conheceu por lá em 2016. Ao descobrir a doença dela, através dos remédios que estavam na bolsa, virou-se contra ela e contava a todos possíveis namorados que arranjava. Várias vezes, dormiu chorando por causa disso, como relata.
Há dois meses, a amiga foi diagnosticada com a mesma doença que ela e pediu, de joelhos, que não contasse à família. A moça escreveu para a tia: “Jesus é fiel na minha vida. Eu não vou fazer a mesma coisa que ela fez comigo”.
Tão forte o testemunho de perdão das duas! Lição de gente de coração com céu.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)