Conheci a moça, em meados da década de 90, na porta da Cadeia do Anhangabaú. Aguardava, em fila, para visitar o marido. Gostava de me mostrar o alimento que preparara para ele no dia anterior. As comidas de que ele mais gostava. Não ficaria muito tempo preso. Dependente químico, se encontrava em local inadequado para comprar droga, ao chegar uma viatura. Foram todos presos.
Observava os olhos verdes com brilho da jovenzinha ao falar do companheiro. Era um homem que a respeitava e a tratava com carinho. Vinha daí as amarras deles. Moravam em uma área de invasão no quintal da mãe dela. Os dois que ajudaram a construir o barraco. Tinham na época os gêmeos, menina e menino. Ela não os levava para o pai ver por considerar que cadeia não era lugar para criança.
Enfatizava que era um homem que a respeitava e a tratava com carinho. O pai morreu cedo e o padrasto passava as mãos em suas partes íntimas, desde os sete anos, enquanto a mãe estava trabalhando. Não tinha coragem de contar pelas ameaças dele. Recentemente me disse, com expressão serena, que o perdoou com a ajuda de Nossa Senhora Aparecida.
Sempre digo que algumas pessoas que conhecemos em situação de submundo são para sempre. Isso no sentido de que nos reencontramos nos caminhos do mundo. Outras vezes, nos procuram para um abraço apenas ou a fim de chorar nos ombros ou pedir ajuda para abrir um caminho próximo.
Há aqueles que se aproximam com certo receio, como se atrás da cela ou em espaço de prostituição pudéssemos tratá-los de um jeito e, na rua, fingíssemos que eram estranhos. Um horror essa diferença de trato dependendo do local!
Alegro-me tanto quando me encontro com algum deles ou delas. Procuram me relatar as vivências distantes do ilícito.
Voltando à moça, não teve vestido de noiva e tapete vermelho, mas tê-lo como parceiro se tornou o sonho de princesa de sua adolescência.
Após o alvará de soltura, que como ela previa, veio rápido, não teve mais ocorrência alguma que o levasse a cumprir pena. Emprego fixo não conseguiu, mas faz bicos que permitem que sobrevivam. Um problema que os atrapalha é o alcoolismo.
Tiveram muitos filhos! Enroscaram-se algumas vezes com a Vara da Infância e da Juventude, principalmente pelas faltas das crianças na escola e alguns com comportamento indisciplinado. Dentre passos e tropeços buscam o bem.
Reencontrei-a, depois de algum tempo, e ela gosta de contar sobre os acontecimentos de sua vida. Semana passada, comentava sobre uma das filhas. Engravidou com 13 anos. Nos exames do pré-natal, disseram-lhe que o bebê possuía uma síndrome rara e não sobreviveria. Propuseram-lhe que abortasse, pois estaria dentro da lei. Antes que a mãe se opusesse – afirmou que jamais permitiria matar uma criança em seu ventre – a filha não quis. O menino nasceu com sequelas graves. Viveu cinco anos e meio. Era tratado na Unicamp. Todos eles o amavam demais. Enxergava muito pouco. Ao ouvir, no entanto, a voz de um daqueles que cuidavam dele, gargalhava com gosto.
A moça me disse que “o sonho de consumo” da família - maneira como ela quis traduzir o sentimento - era o riso do menino, que permanece no coração de cada um.
Gente empurrada para as margens que não perdeu a humanidade e defende a vida.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)