OPINIÃO

Devoradores de livros


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Quando sentei diante do computador e comecei a devorar letras e palavras, senti um sabor diferente que mexeu com meu interior. Notei, em trecho de Murilo Mendes que “livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram”. Me ative a esta frase. Li, reli, reli, na verdade, umas duzentas vezes. E ela estava ali, diante de meus olhos, me mostrando que era isso mesmo, que eu não tinha lido errado. Mas era isso mesmo: nós devoramos livros! Saboreamos letras, formamos palavras, devoramos, sentimos o gosto, nos deliciamos com histórias, com poemas, com frases suaves ou trágicas, dependendo do tempero. E podemos sentir o mesmo sabor várias vezes, dependendo de quanto gostamos daquilo que acabamos de ler.

O mesmo poeta diz, em outro pedaço de sua vida, transformado em poema, que “ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio (porque as águas correm...), nem ama duas vezes a mesma mulher”, mas com certeza, Murilo Mendes sabe que muita gente lê duas vezes o mesmo livro, saboreia a mesma história e sente o gosto doce ou amargo de seu autor. E é comum conversarmos com pessoas que não dizem que lêem livros. Elas dizem “devoro livros”.

Sabemos, com certeza, que não arrancamos as páginas escritas e as jogamos goela abaixo. A arte de saborear livros passa primeiramente pelo olhar, depois pelo tato, com os dedos folheando o autor, depois vem o ato de devorar: transformar a ação dos olhos e dos dedos em leitura, em “refeição”. E muitas vezes – uma eternidade delas – passamos a receita desta alimentação a outros: ou emprestamos o livro – escrito com sangue – ou falamos de seu conteúdo, exatamente como a mulher da televisão passa a receita de bolo, que alguém presta atenção, mistura os ingredientes e transforma em alimento.

É assim que fazemos com os livros: quando contamos seu conteúdo a alguém – e só o fazemos quando gostamos – passamos a receita do autor, para que ele seja devorado. Mais uma vez. Por mais um apreciador da leitura.

Recentemente, num texto de Rubem Alves, a frase de Murilo Mendes é relembrada. E Rubem Alves se declara um antropófago, um devorador de livros. Claro que os dois são antropófagos e já me sinto assim também, e vejo vantagens neste ato de devorar livros. Mesmo o livro sendo feito de carne e sangue não engordam o corpo do leitor, apenas sua mente. Livros não têm contraindicação, não fazem mal à saúde e podem ser devorados por pessoas com qualquer enfermidade. Muitas vezes, eles ajudam na recuperação, tudo dependendo do tempero e do sabor dosados pelo autor. Não precisam ser devorados em doses homeopáticas, superdosagem não provocam morte, ou seja, ninguém comete o suicídio lendo, lendo, lendo. Não é preciso fazer regime quando se devora livros.

Importante, também, saber que escritores vítimas de doenças graves não atingem seus leitores. O livro, apesar de ser contagioso – pois provoca emoções e empolgações -, não transmite doenças, caso seus autores tenham algumas!

Enfim, sei que sou um devorador de livros limitado. Gostaria de ser um leitor mais assíduo, mais constante, para não morrer de fome de ler. Mas sei que devoro textos, mesmo que não estejam dentro de um livro, mas espalhados em páginas viajadas da internet. São como aperitivos ou “lanches” saboreados durante o dia “prá não se morrer de fome”.

Para quem devora estas poucas linhas, saiba que foram escritas com sangue e suor. Um sangue quente, mas que não queima e um suor suave, que não tem odor. Esta também é uma vantagem para quem devora livros: os escritos não exalam cheiro! Apesar do sabor que tem seu conteúdo.

Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)

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