Conheci a família há um pouco mais de vinte anos. Vieram de um lugar distante, alguns me diziam que fugidos e outros que à procura de uma situação melhor de vida. Acredito mais na segunda hipótese. Os filhos menores matriculados na escola, o pai que trabalhava com carteira assinada e os maiores se virando como podiam.
Um deles fez amizade maior comigo. Pedia-me para escrever cartas, a fim de justificar situações que vivera e desejava esclarecer. Colocava-me à disposição com alegria, pois era sua forma de se reconciliar com episódios que lhe pesavam na consciência.
Chances. Que é isso?
No início de um ano, o mais novo, com entrada na adolescência, perguntou-me se possuía uma borracha e um lápis novo para dar a ele e ao irmão. Primeiro dia de aula. Não tinham material para levar à escola e, por certo, determinados alunos os olhariam com desprezo. Pelo menos estariam com algo recente. Doeu-me tanto no coração e dói até hoje.
Permaneceram no sexto ano e no meio do sétimo, desistiram. Reconheciam as letras e os números, contudo era impossível interpretarem textos e problemas. Além disso, nasceu um sobrinho, que eles cuidavam.
Chances. Que é isso?
A mãe cansou dos hematomas provocados pelo marido, ao chegar embriagado e, numa manhã, não a encontraram mais. Nesse tempo, os meninos ao me ver falavam: “Saudade da mãe!” Reapareceu três ou quatro anos depois, quando ele arranjara outra companheira e os riscos de uma violência maior contra ela diminuíra. Nesse tempo, os meninos ao me ver falavam: “Saudade da mãe!”
Chances. Que é isso?
Dos mais velhos, dois escolheram trabalhar e os outros dois, que se envolveram com álcool e drogas, juntaram-se a jovens invisíveis até que cometam um delito.
Na última vez, a malfeitoria transcorreu triste demais. Escorreu sangue em meio às prateleiras. Um deles, alucinado, voltou para a terra de origem, com o propósito de residir com uma tia. O segundo cumpre pena sob protesto, porque não fora ele que se achava com a arma.
Aquele que retornou à terra de origem, percebeu a insatisfação do tio. Eram de facções diferentes. Assim que chegou, de peito inflado, afirmou que sua facção era mais poderosa. Bastou uma semana para ser morto a facada pelo tio.
Chances. Que é isso?
Um dos mais novos dirigiu-se também à casa da tia. Depois do enterro do irmão, foi com um primo para um Estado próximo. Pensou em endireitar seus caminhos. Morava na fazenda em um barraco e o patrão sempre o chamava para serviços diversos e lhe dava um dinheiro extra. O primo foi para o crime e temia que ele motivasse as amizades que fazia a pertencerem à sua facção. Numa emboscada, o primo o matou.
Chances. Que é isso?
Aquele que fez mais amizade comigo, continuou me contando a história deles. Chorou ao me relatar a foto que lhe enviaram do irmão no caixão. Sua grande preocupação é que o mais novo pensa em vingar a morte do irmão. Pediu-me para rezar. De imediato me veio a borracha e o lápis novo, com medo de olhares de pilhéria, que viram como chance.
Com exceção dos dois mais velhos, faltou oleiro para moldar e formar a vida deles, retendo a violência de quem não enxerga caminhos. E cada um de nós pode ser oleiro de vidas que escorrem pelos bueiros do mundo.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)