OPINIÃO

Essa é a história da noite em que eu morri


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Em mais uma das noites de insônia pós-trauma, peguei o celular para enganar o tempo. Abri o site de gerador de imagens por Inteligência Artificial que tanto fez sucesso meses atrás com suas artes de famílias felizes e digitei: "mulher de 33 anos, pele clara, cabelo curto, castanho escuro, franja na testa, braços tatuados, renascendo depois de sobreviver a um incêndio."

A IA foi muito generosa em me mostrar mulheres no melhor estilo capa de CD de rock progressivo, virando borboleta fora do casulo. Uma versão romântica do que foi o pesadelo da fatídica noite de 7 de maio, a partir da qual absolutamente toda a vida que eu conhecia deixou de existir.

Eu, adulta independente e autônoma, me vi, 14 anos após a saída da casa dos meus pais, voltando para os cuidados deles depois de um acidente na madrugada derreter todos os cantos do meu então apartamento, do qual, com sorte, consegui sair. Tive, com a minha família, durante os dias que se seguiram ao fogo, todo o acolhimento de que precisava para superar o baque e a falta imediata de um teto, enquanto reunia ferramentas internas, com ajuda do meu psiquiatra e da minha psicóloga, para elaborar as lembranças vivas do cheiro de fumaça; do calor das chamas perto do meu rosto ao tentar, em vão, apagar as labaredas com água; do som tenebroso dos vidros das janelas estilhaçando enquanto eu corria buscando ajuda no condomínio; da expressão de horror dos vizinhos evacuando o prédio e da movimentação caótica de brigadistas, bombeiros e policiais militares.

Gostaria que Leo, Maria, Neiva e Otávio, os quatro gatos que adotei e amei mais do que qualquer coisa neste planeta, soubessem o quanto eu sinto por não ter conseguido salvá-los a tempo. Não há treinamento que te prepare para despertar de um sono profundo com sua casa pegando fogo enquanto suas pernas falseiam, as mãos tremem e o cérebro congela. Nada faz sentido nesse momento. Mas eles sabem. De algum lugar em que eles estiverem, eles sabem. Eu amarei vocês eternamente, meus anjos lindos e gulosos.

Desde que voltei à rotina após o refúgio familiar, tenho enfrentado o desafio de fazer a vida continuar mesmo com uma ferida aberta no peito. Frases prontas de "vai ficar tudo bem" se misturam com outras de "viva seu luto". Doem as primeiras vezes: o primeiro programa de rádio ao vivo, a primeira noite em que não voltei para o que conhecia como casa, a primeira foto dos gatos no celular ao procurar um documento, a primeira crise de ansiedade ao entrar em uma loja e as primeiras burocracias referentes ao seguro responsável pelos reparos no imóvel. Tudo dói como brasa. A brasa que não me queimou naquela noite me deixa em carne viva agora. Por muitas vezes, senti revolta, buscando explicação para o inexplicável e questionando o que fazer com o peso do sofrimento ao me ser dada a graça da sobrevivência. Conheci o fundo do poço, o final da rua sem saída. Custei a acreditar que tudo foi real.

Ainda assim, em cada escuridão parece haver um pingo de luz que cintila. São pequenos sopros de vida que vêm. Vêm no abrir de janelas ao despertar. Vêm nos abraços afetuosos. No sentir vontade de passar um batom de novo. No amor que ainda será explodido para muitos bichinhos. No entendimento de que, quando perdemos absolutamente tudo o que tínhamos de material da noite para o dia, o que resta são os laços que construímos e o que carregamos no coração. Não é papo gratiluz. A vida é que pulsa e nos deixa com apenas duas alternativas: se entregar à dor ou à possibilidade de cura. E Deus é muito bom.

Fênix não sabe que é uma ave resiliente, ela apenas o é. Fênix não sabe que simboliza a transformação ao renascer das próprias cinzas, ela apenas o faz. Essa é sua vocação. Aqui, do alto da vida real, não podemos voar, tampouco vivemos por 500 anos como conta a mitologia grega, mas esse é o grande mistério da existência humana. E eu hei de abrir minhas asas, me refazer e buscar um caminho bonito do Sol. Como diz Raul Seixas na música "Quando eu morri", "e se a vida pede a morte, talvez seja muita sorte eu ainda estar aqui". E me desculpa, mãe, mas vou ter que tatuar isso pra completar 50 no corpo. Porque não é todo dia que a gente é pássaro de fogo.

MARIANA MEIRA é jornalista, cantora e editora-chefe do Jornal de Jundiaí (mmeira@jj.com.br)

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