Parte 1
Todo dia é o dia mais quente do ano, segundo a moça do jornal. Mas hoje realmente o senhor Sol não está de brincadeira. Minha blusa, empapada na gola, uma pizza tamanho família debaixo do braço e parece que alguém esticou a calçada do prédio. Vejo a portaria, mas nunca chega.
Pra piorar, esse barulho que ninguém entende nada. Um "tuntz, tuntz, tuntz", infernal. Nunca vou entender essa ideia de colocar um som no carro que serviria pra transmitir um show no Maracanã. Olho para a rua e vejo uma pick-up rebaixada. Na verdade, nem sei se ela é mesmo rebaixada ou é o peso de todas essas caixas que parecem querer me deixar surdo. Acho até piada ela ser amarela. Seria o carro perfeito pra vender pamonha.
Não acredito que o indivíduo deu seta! Ele vai entrar... Não, não pode ser! O energúmeno mora no meu prédio? Apresso o passo querendo saber quem é o dono da Saveiro pamonheira. Quando o dono sai, fico olhando sem acreditar. Uma loira tatuada, não sei se olho para ela ou para as tattoos. A rosa atrás da orelha, eu achei legal, mas a cobra parecendo apertar um coração, achei bem esquisita. Um cheiro suave exalando, provavelmente algum perfume caro. E eu aqui com as sacolas de cenoura e alface na mão. Com essa minha cara de nabo, acho que já tenho a salada completa.
Esperei ela entrar e fui ver qual era a garagem. Como as vagas são todas padronizadas, eu já saberia qual é o seu apartamento.
Apartamento 5 bloco 8.
É engraçado que, agora, toda vez que passo em frente à vaga, vejo aquele carro. Já passei aqui tantas vezes e nunca tinha visto o pamonhão. Estava até observando bem, o carro é bacana. A cor, o insulfilm e o rosto da Minnie preso na ponta da antena, deu um toque feminino.
Semana passada, até fui à reunião de condomínio, só pra ver se via ela. Eita, se arrependimento matasse... Além dela não ir, tive que aguentar o síndico falar por duas horas sobre o novo rateio do gás e o problema das baratas. Só tinham umas cinco pessoas. Todos uns chatos que só queriam reclamar de tudo. Principalmente seu Aristides, que toda hora levantava a mão e ninguém entendia nada por conta daquela voz de Derby.
Acho que estou ficando besta. Dando muita importância pra essa história. Mas e se eu fosse até o apartamento dela? Inventasse alguma desculpa, sobre o funcionamento da antena comunitária ou qualquer outro assunto. Se fosse no século passado, bateria na porta para pedir açúcar emprestado, mas hoje, essa desculpa, além de clichê, não cola mais. O prédio tem a lojinha própria.
Inclusive, a dona Maura reclamou na reunião, se levantou interrompendo o síndico e falou que é um desrespeito com os moradores, que os produtos estão sempre vencidos e ninguém toma uma atitude. Nem prestei atenção, quanto mais ela esbravejava, mais o cheiro de alfazema tomava conta do ambiente.
E não é que acabei criando coragem? Nem acreditei, mas agora o dedo já apertou a campainha, não tem mais volta. Toquei e ninguém saiu. Achei melhor não tocar novamente. Respirei aliviado, melhor deixar isso pra lá.
— O que é melhor deixar pra lá? Perguntou ela.
"Droga, pensei em voz alta. E agora?"
Continua...
Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)