Entristeço-me quando uma pessoa me conta, em suas lembranças da infância, que passou fome.
Nas situações de guerra, de antes como de agora, acompanhamos, pelas notícias que chegam, penso que sempre faltam mais informações sobre o flagelo da fome. Quando criança, meu primeiro impacto sobre a fome veio dos navios negreiros e dos campos de concentração do nazismo. Nossos pais, por menores que fôssemos, jamais se omitiram sobre barbáries. Penso que foi educação para a sensibilidade.
Há meninas que se trocam por um ou mais itens de cesta básica, com apoio dos pais, nesse imenso Brasil, em nome da fome. E a fome produz sequelas. Crianças desnutridas, menores de cinco anos, podem ter comprometido o seu desenvolvimento físico e mental.
Já convivi com criança com problema de crescimento devido à falta de alimentação adequada e, além de toda a situação, passou a sofrer bullying na escola e na rua, com apelidos pejorativos.
Ignorava que, dentre os resultados da fome, houvesse uma síndrome chamada de Alotriofagia. É uma vontade irresistível de comer coisas que não são comestíveis e que a pessoa sabe que não deveria comer. As causas são variadas, mas geralmente acontece com pacientes que apresentam algum tipo de deficiência nutricional.
De repente, você se depara com uma criança comendo um móvel de madeira compensada. É o alimento que não chegou ou não chega à mesa. Ou melhor, ao prato, porque há gente que não possui mesa em casa.
Disse, há tempo, o escritor moçambicano Mia Couto, na Conferência de Estoril sobre segurança, em 2011: "Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome. (.,) O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. (...)
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade". Mudou alguma coisa?
Estranho ficar indiferente às vítimas de Alotriofagia. Faz-me lembrar a colocação do Padre Márcio Felipe de Souza Alves, Reitor e Pároco da Paróquia Santa Rita de Cássia, no último domingo, a respeito dos discípulos de Emaús (Lucas 24, 35), que reconheceram Jesus no partir o pão, ou seja, porque o Senhor se quebrou todo por nós. Em lugar da indiferença foi o Amor, que sangrou na cruz.
Anestesiados pelo consumismo, tantas vezes não vemos os filhos e as filhas da fome que caminham na invisibilidade.
Diz a canção "Quem tem fome, tem pressa": "Nesse momento tem gente morrendo de fome/ No nosso Brasil/ É a tristeza que a sociedade consome/ Me diz quem não viu. / Quem tem fome tem pressa/ E não pode esperar/ A fome é perversa/ E não dá para negar/ E quem alimenta esse monstro do mal/ É a desigualdade social. (...) Vem ajudar a renovar/ A esperança de alguém/ O que é pouco para você/ Pode salvar quem nada tem".
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)