Nesse final de semana eu assisti a dois filmes que me alertaram para uma verdade muito inconveniente sobre como nós tratamos nossos heróis e heroínas. A maneira como guardamos na prateleira do esquecimento as pessoas que fizeram coisas notáveis e que, por sei lá qual motivo, não são reconhecidas como deveriam.
Os filmes em questão são o "O sequestro do voo 375", de Marcus Baldini (2024) e "Nise: o coração da loucura", dirigido por Roberto Berliner (2016) e estrelado por Glória Pires. Não irei aqui fazer uma análise dessas películas nacionais. Como sempre, deixo a arte de comentar sobre cinema ao meu companheiro de jornalismo e cinéfilo ímpar, Rafael Amaral. Ficarei aqui com o que me cabe: as provocações.
Imagine estar em um avião que saiu de Belo Horizonte rumo ao Rio de Janeiro em mais um dia comum no redemocratizado Brasil e, 20 minutos após a decolagem, vivenciar um sequestro a mais de 30 mil pés de altura. O sequestrador queria apenas uma coisa: jogar a aeronave no Palácio do Planalto para matar o presidente José Sarney.
Fernando Murilo de Lima e Silva, piloto do avião, teve que lidar com essa situação logo após ver seu amigo e co-piloto ser morto pelo sequestrador. Em sua aeronave, 135 passageiros e 8 tripulantes a bordo; em sua cabeça, uma pistola calibre 32. apontada pelas mãos de Raimundo Nonato Alves da Conceição, motorista de trator desempregado que queria assassinar o presidente; e no seu encalço, um caça F-5 da Força Aérea Brasileira pronto para abater o avião da VASP no qual pilotava caso a rota continuasse para Brasília.
Devido sua experiência como piloto de acrobacias da Esquadrilha da Fumaça, Fernando Murilo realizou uma série de manobras arriscadas e quase impossíveis para um Boing 737, mas que foram determinantes para que ele pudesse derrubar Nonato, sair da rota da capital federal e fazer um pouso de risco no Aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia. Sua destreza e habilidades salvaram todos os passageiros a bordo e ainda frustaram o que seria um dos maiores atentados aéreos da história. Herói, não? Não.
Fernando Murilo morreu em 2020 aos 76 anos vítima de complicações cardíacas e diabetes. Trabalhou até os 60 anos e foi enterrado em Armação dos Búzios (RJ), sem pompas ou quaisquer homenagem à altura de seu feito. Além de quase morrer no anonimato, o piloto teve suas ações colocadas sob dúvidas para a opinião pública que nunca o reconheceu como o herói que foi. Ganhou algumas páginas de jornal e, 36 anos depois, um filme que faz jus aos seus feitos naquele fatídico 29 de setembro de 1988.
Desfecho diferente para a Dra. Nise da Silveira que, após veto do ex-presidente Jair Bolsonaro para incluí-la no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria ou Livro de Aço, teve seu nome incluso pelo Congresso Nacional e considerada oficialmente "Heroína da Pátria" em 2022. Na justificativa do veto de Bolsonaro, constava que não seria possível avaliar o impacto do trabalho de Nise no Brasil.
Nise, após prisão política, voltou ao trabalho como psiquiatra no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II (RJ). Por não concordar com os métodos violentos da época para tentar curar os pacientes, Nise inaugurou a "Seção de Terapêutica Ocupacional", onde os enfermos podiam ter contato com a arte (pintura e modelagem) para o seu tratamento.
A médica alagoana - única mulher em sua turma na faculdade de medicina - chocou toda uma comunidade machista e reacionária, que se baseava em práticas como a lobotomia, ao mostrar os avanços da terapia humanizada que ela concretizou no hospital. Criou em 1952 o Museu da Imagem do Inconsciente, para preservar e expor as obras de arte produzidas pelos seus pacientes.
Escreveu pelo menos sete livros, ganhou quatro prêmios internacionais, inspirou inúmeros projetos no Brasil e na Europa e foi fundadora da Sociedade Internacional de Expressão Psicopatológica na França. Faleceu em 30 de outubro de 1999, devido a complicações respiratórias.
E mesmo feito tudo isso e mudado para sempre a história da psiquiatria no Brasil, teve sua obra questionada por um presidente da República e é desconhecida do grande público. O filme que conta sua história - e talvez a obra de maior alcance sobre seu trabalho - foi lançado 17 anos após sua morte.
Fernando Murilo e Nise da Silveira deveriam configurar no imaginário e na memória coletiva assim como astros do esporte ou do show business. Mas eles dois, infelizmente, são apenas mais dois membros de um clube de heróis e heroínas esquecidos pelo tempo. Clube esse que tem nomes como Roberto Landell de Moura, Luiz Gama, Helley de Abreu Silva Batista, João Cândido Felisberto, Margarida Alves entre tantos outros. Esses não viraram estátua e nem nome de rodovia. Esses lugares estão ocupados por pessoas como Duque de Caxias, que matou cerca de 10 mil pessoas, a maioria pretos e mestiços como o outro herói anônimo, Manoel Francisco dos Anjos Ferreira.
E se você não reconhece esses nomes que citei anteriormente, só comprova o quanto somos negligentes com os nossos heróis e heroínas. Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)