OPINIÃO

Amor gastronômico

17/02/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Pode ser lido ouvindo Leave The Door Open do Anderson Paak e do Bruno Mars

Ela aprendeu a fazer o bife acebolado do jeito que ele gostava, só pra ver ele comer satisfeito e lamber a faca. A mãe dele sempre reclamou que aquela era uma mania feita e deselegante. Sua parceira entendia como um elogio, como uma forma de validar que a comida estava tão gostosa que ele não queria perder nada. Nem para os talheres.

Ele aprendeu o ponto do pudim do jeitinho que a avó dela fazia, só pra ver ela lambuzar os lábios depois dos almoços de domingo.

E assim o amor deles começou na cozinha. Não demorou muito e preencheu todos os cômodos da casa. Os parques da cidade e os restaurantes chiques. Tudo na rotina dos dois se resumia a gastronomia.

Nos dias frios cozinhavam em casa, nas tardes de sol caminhavam em praças e acabavam em alguma lanchonete e nas noites românticas saiam pra comer em algum lugar recomendado pelo guia Michelin.

Como dizia minha avó, no início tudo são flores, depois que vêm as pedras. E foi assim que as coisas começaram a desandar. Assim como quando se erra a receita, se põe pouco trigo na massa do bolo ou sal demais no macarrão.

Desandaram porque não souberam ultrapassar os limites da cozinha, ou talvez porque não era amor, era só paixão, com data de validade próxima.

Como um livro de receitas que chegou ao fim.

Independentemente de onde era esse fim, ele chegou. E livro de receitas não tem as respostas no final, não tem como corrigir. Se não tiver o ponto da massa, o feeling no preparo, já era.

Lembrei de novo da minha avó: Não adianta chorar pelo leite derramado. E não adianta mesmo, até porque o leite só derrama quando a gente olha pro outro lado, quando falta a atenção. É a vida que insiste em nos fazer lembrar que o agora é o que importa. seja pra salgados, doces ou amores.

Quando passa do ponto não tem jeito. Ela constatou isso da pior forma, com uma dor no peito enquanto encarava aquele olhar distante que ele lhe dava, com a testa oleosa refletindo a luz do teto e a tristeza da alma. Aquele fim que era inesperado e inevitável. Ela sentia que ele não quis insistir. Menino criado a pera descascada, não soube lidar com a primeira crise e já correu pra barra da saia da mãe.

Ele ficou olhando pra casa fazia, assim como o peito dele.

Chegava a dar eco, inclusive na casa.

Ela levou o sofá, a geladeira e o cachorro. Deixou-o com a saudade e o remorso. Provavelmente não iria querer mais cozinhar naquela casa, todo prato teria gosto de saudade e aroma de remorso.

O passar do tempo não aplacava a saudade que sentiam, toda a intensidade vivida era o veneno e o antídoto dos dois.

Quando a gente sabe que é o fim? Quando uma prova é ponto final, vírgula ou só reticências?

Ele nunca foi bom com pontuações, nem ela com gramática. Colocar só o ponto final antes de encerrar a frase é mais fácil. Mesmo quando vem acompanhado do medo de encerrar o que poderia ter sido...

Poderia, mas não foi, assim nesse gerúndio incerto. Mas quem disse que seguir a receita à risca é garantia de sucesso?

Tem dias que o prato desanda, e a gente erra a mão no sal.

Ai o que fica mesmo é a saudade dos dias doce ao lado de quem se ama.

Hoje eles cozinham em cozinhas separadas...

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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